Regra 34: o Leopardo de Locarno fala português (do Brasil)
Regra 34, da brasileira Júlia Murat, levou o prémio máximo do festival suíço, mas as primeiras obras da costa-riquenha Valentina Maurel e do croata Juraj Lerotic saem do evento com três prémios cada. Cinema português em branco no palmarés oficial.
O júri costuma ser soberano nestas coisas dos festivais de cinema, e não podemos dizer que tenha escolhido mal. O palmarés do Festival de Locarno, anunciado ao princípio da tarde de sábado em cerimónia particular no cinema Gran Rex daquela localidade suíça, soube premiar alguns dos melhores filmes de uma competição onde os pontos altos podem não ter sido muitos, mas foram bem altos. Mas não deixou de ser uma surpresa, tanto pelo que premiou como pelo que não premiou.
O Leopardo de Ouro foi para o excelente filme da brasileira Júlia Murat, Regra 34, filme “do nosso momento” abordando questões de justiça social, feminismo, identidade sexual e violência de género na história de uma advogada estagiária e da sua atracção pelo BDSM que não estava na “bolsa de apostas” dos críticos. É um galardão tão artístico quanto político, que premeia não apenas um óptimo filme, mas também uma postura de desafio às actuais políticas culturais brasileiras.
O Prémio Especial do Júri coube à terceira longa do italiano Alessandro Comodin, o simpático mas inofensivo retrato semi-ficcionado de um polícia de província Gigi la Legge (montado pelo português João Nicolau). Mas foi a notável estreia da costa-riquenha Valentina Maurel, Tengo Sueños Eléctricos, que o júri (presidido pelo produtor Michel Merkt e completado pelas cineastas Laura Samani e Prano Bailey-Bond, pelo realizador Alain Guiraudie e pelo produtor William Horberg) acabou por destacar. Outorgou-lhe três (merecidíssimos) prémios — os Leopardos de melhor realização, melhor actriz (a espantosa Daniela Marín Navarro) e melhor actor, tornando-o na prática no “filme” do festival.
A mesma lógica pareceu aplicar-se na competição secundária Cineasti del Presente, concentrada em primeiras e segundas obras. Aqui, o júri formado pela realizadora Gitanjali Rao e pelas produtoras Annick Mahnert e Katriel Schory atribuiu o Leopardo de Ouro ao filme da eslovaca Tereza Nvotová Nightsiren, exibido já mesmo no final do festival.
Mas o destaque acaba por recair nos outros premiados: How Is Katia?, história de luto e resistência à corrupção assinada pela ucraniana Christina Tynkevych, ganhou o Prémio do Júri e o Leopardo de melhor actriz para Anastasia Karpenko, no papel de uma mãe que pede justiça para a filha morta num acidente de viação. E o catártico “caso da vida” Safe Place, do croata Juraj Lerotic, recebeu o prémio de Melhor Realizador Emergente e o Leopardo de melhor actor (Goran Markovic, no papel do irmão suicida). Safe Place venceu ainda o prémio de Melhor Primeira Obra, transversal às várias secções e atribuído por um júri separado, “empatando” com Tengo Sueños Eléctricos como filme mais premiado da edição de 2022.
De fora do palmarés ficaram vários títulos apontados como favoritos ao longo do festival. À cabeça, Nação Valente de Carlos Conceição (que teve de se contentar com o galardão Europa Cinemas, “marca de qualidade” atribuída por um júri de distribuidores e exibidores); Human Flowers of Flesh da alemã Helena Wittmann (certamente o mais onírico e sedutor dos títulos a concurso, e um especial favorito dos críticos mais vanguardistas); e Fairytale de Aleksandr Sokurov (que muitos apostavam estar na calha para receber um prémio especial).
Num festival tradicionalmente apostado em premiar cinema de autor verdadeiramente novo, é sintomático (e um pouco decepcionante) que os premiados, independentemente da sua qualidade, pertençam quase todos à vertente mais tradicional do “filme de festival”. A esse respeito, vale a pena referir que How Is Katia? não foi o único título sobre a Ucrânia a ser premiado; o (excelente) documentário polaco de Elwira Niewiera e Piotr Rosolowski The Hamlet Syndrome, sobre um grupo de teatro composto por ucranianos exilados que ensaia um Hamlet inspirado pelas suas vivências traumáticas na invasão russa de Donetsk e da Crimeia, recebeu o Grande Prémio na paralela Semana da Crítica.
Também de notar que a excelente mas pequena presença asiática no certame também ficou de fora do palmarés, exceptuando-se Stone Turtle do malaio Ming Jin Woo, que levou o prémio FIPRESCI da crítica.