O enólogo, o chef e o gastrónomo entram às cegas numa prova

Só sabiam que iriam provar quatro vinhos. Desconheciam marcas, regiões, castas ou datas de colheita, sentaram-se diante de um perfil que pode ser a próxima moda nos brancos.

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O chef Leopoldo Calhau, da Taberna do Calhau, foi um dos convidados a provar às cegas o kit dos 40 anos de Soalheiro. Rui Gaudêncio

O enólogo Diogo Lopes, o chef Leopoldo Calhau e o gastrónomo Miguel Abalroado gostam de participar em exercícios que forçam a exploração de memórias sensoriais guardadas ao longo de décadas. É por via da prova cega que evoluímos. É divertida e tem a virtude de fechar a cauda de pavão que há em cada provador da nação (nós, incluídos).

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O enólogo da adega Diogo Lopes, Miguel Abalroado e o chef Leopoldo Calhau. Rui Gaudêncio

Assim, cada um dos três provadores tinha quatro copos à sua frente, classificados com as letras A, B, C e D. Embora, de início, surgissem dúvidas sobre se o vinho A estaria ou não com ligeiro aroma de mofo — coisa que foi desaparecendo com o tempo — Diogo Lopes começou por dizer que o vinho tinha umas “notas iodadas, quase vulcânicas” e com “acidez que até morde”. Leopoldo Calhau, que tombou de amores pelos vinhos ditos naturais — o que implicou ouvir várias bocas à mesa e às quais reage com gargalhadas sonoras – disse logo sobre o vinho A: “não é a minha praia”. Apesar de reconhecer que, na boca, “fica, fica e fica”. Já Miguel Abalroado salientou que o vinho “está tão eléctrico que precisa de mais tempo em garrafa para arredondar”. Região? Casta? Ano? Ninguém acertou, apesar de o enólogo sugerir que o vinho seria de uma região fria.

Seguindo em frente, toda gente concordou que o vinho B era radicalmente diferente. Diogo Lopes disse que “era mais gordo e a fazer lembrar um Chardonnay submetido a bâtonnage intensa”. Realçou os sabores tropicais e voltou a insistir “na região fria”. Miguel Abalroado concordou com o enólogo, mas sublinhou: “a acidez é semelhante à do primeiro vinho, só que, como é mais untuoso, equilibra”. Para rematar ao seu jeito, Leopoldo Calhau despachou a coisa dizendo que o vinho “cheirava a Sumol de ananás”. Região? Casta? Ano? Miguel Abalroado afirmou que, pelo nariz, “diria que é um Alvarinho”.

De passagem para vinho C, o chef afirmou que estava “pronto para ser bebido” e realçou “a secura e o seu carácter gastronómico” (desta vez não ouviu nenhuma boca). O enólogo falou de “notas amargas e de um imenso potencial de boca”, enquanto o gastrónomo destacou que o branco “tinha menos fruta e menor comprimento de boca”. “Parece-me o vinho A”.

A prova cega de vinhos decorreu na Adega Mãe com o enólogo da adega Diogo Lopes, o Miguel Abalroado e o chef Leopoldo Calhau da Taberna do Calhau. Rui Gaudêncio
Os vinhos do Soalheiro. Rui Gaudêncio
Miguel Abalroado em prova. Rui Gaudêncio
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A prova cega de vinhos decorreu na Adega Mãe com o enólogo da adega Diogo Lopes, o Miguel Abalroado e o chef Leopoldo Calhau da Taberna do Calhau. Rui Gaudêncio

Para comentar o vinho D, Leopoldo Calhau levantou uma lebre: “Isto não será tudo a mesma casta, mas com processos enológicos diferentes? Acho que este quarto vinho tem um bocadinho dos três anteriores. Tem um calor no final de boca que me faz lembrar um Fernão Pires da Península de Setúbal. Ou, se calhar, um Loureiro”.

Diogo Lopes discordou da ideia do Fernão Pires, manteve-se na tese da região fria e classificou o vinho D como “intrigante”. E depois, com uma sobrancelha mais levantada do que outra, comentou: “A mesma casta? A mesma região? Será? Lixado, isto!”.

Miguel Abalroado disse estar perante o “mais complexo, mais velho e mais quente, mas ainda assim o mais equilibrado dos quatro vinhos. Por causa da acidez estava tentado em dizer que é Arinto, mas não será. Parece-me também de uma região fria”.

Para rematar, Diogo Lopes disse que os vinhos B e D eram tão idênticos quanto o A e o C, ideia que mereceu apoio de Miguel Abalroado. Leopoldo ia regressar à onda dos vinhos ditos naturais quando o enólogo o interrompeu para dizer que estava à beira de “invocar a 5.ª emenda”. Mais gargalhadas na sala.

Quando acabaram os risos e quando, finalmente, revelámos que tinham estado a provar quatro vinhos de uma única casta (Alvarinho), de um único produtor (Soalheiro), mas apenas de duas colheitas, fez-se um ligeiro silêncio, seguido de “uau!” (Diogo Lopes), “bem!!!” (Leopoldo Calhau) e “giro, muito giro” (Miguel Abalroado). Portanto, os convidados provaram o kit que António Luís, a irmã Maria João e mãe Maria Palmira conceberam para celebrar os 40 anos da Quinta do Soalheiro, que ocorreu em Março passado.

Em mais um rasgo de criatividade, António Luís foi aos stocks e seleccionou dois vinhos Soalheiro Clássico de anos completamente diferentes e que ficaram durante anos a estagiar em cubas e com as borras. Um da colheita de 2015 (vinho A na nossa prova), que, de facto, se apresenta com notas de mineralidade e uma acidez tão vibrante que custa a acreditar que seja de 2015. E outro da colheita de 2018 (vinho B), com muita fruta madura e untuosidade. Depois, com estas duas colheitas fizeram-se dois lotes. O vinho C reúne 85 por cento da colheita de 2018 e 15 por cento da de 2015. E o vinho D faz o inverso: 85 por cento da colheita de 2015 com 15 por cento da colheita de 2018. A este kit deram o nome de Soalheiro Edição Especial 40 anos, que está à venda em garrafeiras por 195 euros.

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O kit de comemoração dos 40 anos de Soalheiro custa 195 euros. DR

Como se percebe agora, seria impossível que algum convidado – ou quem quer que fosse neste mundo – desconstruísse este kit de Alvarinho. Ainda houve quem mencionasse a casta (Miguel Abalroado) e quase todos estavam de acordo com o facto de a região ser fria. A partir daqui, nem o mais reputado dos perfumistas chegaria lá.

Agora, para os devidos efeitos, o vinho preferido dos três convidados – e também do autor deste texto – foi o quarto da série (vinho D). Se por si só o 2015 (vinho A) estava com uma acidez estratosférica, bastaram 15 por cento da colheita de 18 para o amansar, tornando-o, de facto, “intrigante”. Em tese, pelo seu carácter mineral, vegetal, fumado e vibrante, fazia lembrar-nos um branco de Sancerre, sem que se notasse qualquer evidência de Sauvignon Blanc. Mas é Alvarinho – e um Alvarinho de espantar em qualquer parte do mundo.

O Kit que será uma tendência?

Este exercício feito às cegas entre amigos que costumam juntar-se para provar vinhos de todo o mundo teve três objectivos: Primeiro, cultivar o exercício da prova cega (é desafiante, divertido e didáctico); segundo, prestar tributo a uma empresa a quem todos os amantes de vinho devem muito e que, hoje, funciona como um laboratório de inovação (no vinho, mas também nas carnes de porco bísaro ou nas infusões); e, terceiro, registar que o kit imita de alguma forma – como sublinhou Miguel Abalroado – o método da preparação dos vinhos base para os grandes champanhes: a assemblage, com colheitas de diferentes anos.

De facto, pelo que se ouve, a próxima moda em matéria de vinhos brancos premium poderá ser o lançamento de lotes de diferentes anos numa mesma garrafa (que não apenas o refrescamento de colheitas que já se pratica legalmente). Existem já no mercado meia dúzia de vinhos sem data de colheita e interessantes, sendo justo reconhecer que quem ousou nesta matéria foi Manuel Vieira, na Quinta dos Carvalhais, com o Branco Especial. E nós gostaríamos de registar que um dos melhores brancos que bebemos nos últimos meses foi o Guru No Millésime, da Wine & Soul, que, curiosamente, apareceu num jantar pelas mãos do Diogo Lopes.

De maneira que quando a família Cerdeira decide celebrar os 40 anos do Soalheiro desta forma se calhar não está a dar ponto sem nó. Se calhar teremos um destes dias alguma referência com duas, três ou mais colheitas de Alvarinho na mesma garrafa.

Fundador da Quinta de Soalheiro, João António Cerdeira foi visionário quando, em 1974, plantou a primeira vinha contínua de Alvarinho. Hoje tem o seu legado bem entregue aos que cá estão.

O conjunto Soalheiro Edição 40 Anos está à venda nalgumas garrafeiras por 195 euros. É um kit interessante para se provar às cegas entre amigos. Dá conversa que nunca mais acaba.

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