“O que é que és ao Padre Vaz Pinto?”
Sem desprimor para outros membros da família, a verdade é que bastava estar uns minutos com ele para perceber porque é que os graus de parentesco se afeririam dali.
Conheço o Padre António Vaz Pinto desde que me lembro. Das missas do galo e da Páscoa, em particular dos momentos em que, com algum autoritarismo, mandava calar os miúdos irrequietos que não compreendiam a importância da Santíssima Trindade. Seguidas dos faustos almoços de Natal e Páscoa em que não se coibia de comer um bom cabrito e de beber um bom vinho, enquanto explicava em privado o que tinha acabado de celebrar em público. Na verdade, explicava isso e muitas outras coisas, uma vez que era verdadeiramente um cidadão do mundo, com um saber absolutamente magistral e digno de se colocar num pedestal pela forma como o transmitia. Essa era uma das razões pelas quais lhe chamava com orgulho (e continuarei a chamar) tio.
O Padre António Vaz Pinto partiu no dia 1 de julho de 2022. Deixa uma família enorme. Do lado que me toca mais diretamente, julgo que para cima de 500 (quinhentos) irmãos e primos e outros parentes da linha colateral do ramo Vaz Pinto do qual faço parte. Tão grande que me recordo distintamente de, com talvez dez anos, ter participado num almoço onde se quis juntar a prole toda em Arouca, na Quinta do Boco (local onde se passavam os tais almoços a seguir à missa das festividades por ele celebrada). Quer nesse almoço, quer sempre que encontrei ao longo da vida alguém de quem poderia (sem conhecer, naturalmente) ser parente por essa via, a pergunta que se colocava invariavelmente era “o que é que és ao Padre António Vaz Pinto?” Sem desprimor para outros membros da família, a verdade é que bastava estar uns minutos com ele para perceber porque é que os graus de parentesco se afeririam dali.
O Padre António Vaz Pinto foi alguém muito relevante do ponto de vista humanitário, não só no nosso país, mas no mundo. Como bem referiu S. Exa. o Presidente da República: “António Vaz Pinto foi uma das figuras da Igreja Católica mais marcantes dos anos 70 até ao virar do século, na Companhia de Jesus, na Cultura, e, sobretudo, na formação da Juventude Universitária – quer em Lisboa, quer em Coimbra –, e na presença pioneira no mundo da língua portuguesa. De raras qualidades humanas e vocacionais, o seu poder de mobilização dos jovens dele fez um arauto inspirador de causas e missões comunitárias.”.
Ao longo dos tempos foi aparecendo na minha vida, mas de alguma forma sempre presente.
Esteve presente e celebrou os inúmeros batismos dos meus primos mais pequenos, aonde gostava sempre de ir e de contar depois histórias interessantes e engraçadas.
Esteve presente quando quis fazer um trabalho no secundário para a disciplina de História sobre o ecumenismo, no âmbito do qual o entrevistei com um amigo: escusado será dizer que tivemos a melhor nota e a professora, no fim da entrevista, disse qualquer coisa como “Este Padre António Vaz Pinto… Se pudesse dar-lhe 20 valores, dava”.
Esteve presente quando esporadicamente me fui aconselhando com ele sobre o meu futuro profissional (também ele tirou Direito, e também ele gostava de muitas outras coisas).
Mas mais importante, abençoou o meu casamento, fará agora um ano. Na verdade, foi parte fundamental não só nesse incrível dia como de todo processo.
Essa é outra das razões pelas quais tenho orgulho em chamar-lhe tio: não sou crente. Todavia, recordo com humor o momento em que ele me pergunta “Então conta lá: tens ido à missa?”, ao que eu respondo, pela enésima vez, “Tio, não sou crente…” e ele apenas responde “És é preguiçoso…”. Julgo que para ele era mais fácil aceitar a preguiça como justificação para não acreditar ou praticar algo que para ele era evidente. Percebeu, sem prejuízo, que para nós era importante casar pela Igreja e que fosse ele a casar-nos.
Nesse contexto, eu e a minha mulher estivemos umas quantas vezes com ele nos últimos anos. Beneficiámos, por isso, do tempo dele no âmbito dos tais faustos almoços que muito nos alegraram e no final dos quais gostava de o imitar a falar na brincadeira, mas sem grande sucesso: era inimitável.
Foi verdadeiramente uma honra têrmo-lo tido a ele, o tio, a abençoar o nosso casamento – “Não é coisa pouca”.
“Sempre tive uma ótima relação com a morte, nunca me assustou. A morte é a porta da ressurreição. Por isso, se me disserem que eu vou morrer amanhã, não me afeta nada, não preciso de mais de um quarto de hora. É só mudar de casa”. Padre António Vaz Pinto
Querido tio, espero sinceramente que na nova casa haja uma mesa onde um dia, daqui a muitos anos, possamos novamente almoçar. Prometo que nesse dia serei menos preguiçoso.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico