O dia em que subimos uma montanha na Suíça — para um recorde mundial

Oitenta mulheres de 25 nacionalidades, com diferentes aptidões físicas, chegaram juntas ao topo do Breithorn, próximo de Zermatt. A “mais longa corda de mulheres num pico de 4000m nos Alpes” quer puxar outras para os desportos de montanha.

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A 4164m acima do nível do mar, no Breithorn Caroline Fink

“Eu adoro fazer o meu corpo sofrer”, apresentou-se, muito séria. Ri-me, assustada, mas acreditei em cada palavra. Apertei o arnês à volta da minha cintura com mais força. Foi quando conheci Nouran Salah que começaram as dúvidas, que só se dissipariam com as nuvens aos 4000 metros de altitude.

Altamente difícil de definir, a intrépida egípcia que emana serenidade perguntou-me se estava ansiosa. O projecto 100% Women, do Turismo da Suíça, queria estabelecer o primeiro marco mundial da “maior equipa feminina num pico de 4000m nos Alpes”, uma forma de incentivar mais mulheres a experimentarem desportos de montanha, tradicionalmente dominados por homens de contextos privilegiados.

Para isso, reuniram um grupo de 80 mulheres de 25 nacionalidades, com diferentes idades e aptidões físicas. “Se já estás acostumada a fazer trilhos de quatro horas não terás dificuldades”, disseram-me, antes da partida para Saas-Fee, um antigo vilarejo transformado em mega-resort de esqui cenicamente encaixado num planalto elevado do Vale de Saas, no cantão de Valais. “Na neve é a quase mesma coisa e vão ter toda uma equipa convosco.”

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Nicole Schafer

No entanto, ali estava eu, encurralada por 13 picos com mais de 4000 metros e rodeada de ultramaratonistas, guias de montanha no Cazaquistão e no Irão, campeãs de esqui e de escalada, ciclistas, influencers que certamente publicam muitas fotografias no ginásio e outras jornalistas que já fizeram a maratona do Pólo Norte.

Nouran Salah, por exemplo, percorreu de bicicleta as ruas pouco amigáveis para mulheres dos bairros menos privilegiados do Cairo, para distribuir refeições gratuitas durante o Ramadão, todos os dias, antes de quebrar o próprio jejum.

Comecei a duvidar da minha capacidade respiratória – as minhas sapatilhas de corrida estão à porta do apartamento, mas estrategicamente colocadas para me fazerem sentir culpada sem atrapalhar as entradas e saídas – e desprezei o smartphone por ter destruído o meu sentido de orientação (sentimento que passou assim que recuperei o telemóvel branco que durante duas horas achei ter sido engolido pela neve no glaciar Längfluh).

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Switzerland Tourism / Florence Gross

Embora imensamente inspiradoras, as guias de montanha são também muito pragmáticas. O conforto que dão está nas capacidades que treinaram ao longo de anos e não em falsas esperanças para uma estreante dividida entre a mania do controlo e o desejo de novas experiências.

“Se pensares que nunca conseguirás fazer isto, então não vais mesmo conseguir”, disse-me Caroline George, a guia de montanha que deixaria também que guiasse a minha vida. “Lembra-te que é um desafio e que é suposto ser difícil. Tens de mudar a narrativa e escolher palavras positivas que te façam acreditar em ti mesma e te encorajem a tentar.”

É um trabalho difícil reconhecer e tentar mudar a forma como o nosso cérebro foi ligado por causa do instinto de sobrevivência e de continuação da espécie. “Vivemos hoje num mundo menos ameaçador e, no entanto, a negatividade continua a ser a nossa configuração-padrão”, diz a responsável técnica do projecto 100% Women.

Antes do dia de treino, e já sem tempo para lamentar a falta de preparação física, Caroline George aconselhou as mulheres que iriam pela primeira vez conquistar um pico de 4000 metros a não menosprezarem a preparação mental. O ar não estava muito frio, o trilho estava bem marcado, o que dispensava conhecimentos e experiência técnica específica, e teríamos tempo para dominar os arneses e os grampos de ferro, “ferramentas empoderadoras” e não últimos recursos contra um dos picos de 4000 metros mais fáceis dos Alpes. “Se estiverem bem mentalmente, o físico segue-o.”

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Caroline George a guiar uma das cordas Nicole Schafer

Uma manhã de treino glaciar

No glaciar Längfluh, comecei a pensar que talvez não devesse ter revirado os olhos à sugestão de encontrar um mantra. Precisava de algo a que me agarrar, enquanto a neve parecia querer enterrar-me a cada passo. Em vez de andar, arrastava-me aos tropeções e quanto mais cansada ficava, mais difícil se tornava resistir às quedas.

“Com um bom trilho tudo fica mais fácil”, garantia Rocío Siemens, a guia de montanha responsável pela corda de mais quatro mulheres onde a Fugas estava.

No final do treino, descobrimos que não seria um bom trilho que nos abriria caminho entre os campos de neve, glaciares e curtos trechos de rocha até ao cume do Allalinhorn (4027m acima do nível do mar).

A aproximar-se a primeira vaga de calor do Verão, que disparou a temperatura em Zurique para os 34º C, a neve não congelou como esperado durante a noite e o trilho não ficou bem assente.

“Vimos o quanto a neve parecia mole debaixo dos nossos pés”, disse Rocío. Enquanto treinávamos, quatro guias foram do glaciar até ao topo para avaliar as condições. Caíram em fendas gigantes quando nunca tinham caído nas suas vidas.”

Tínhamos treinado o que fazer no caso de alguém da nossa equipa cair numa das estreitas e profundas crevasses que motivam alertas de perigo em toda a parte dos glaciares. “Com estas condições e com a vossa experiência, não conseguimos atingir o objectivo. Há uma probabilidade elevada de metade do grupo não conseguir chegar ao topo”, informou Caroline George. “A segurança impede-nos de sequer tentar.”

Felizmente, estamos na Suíça. Não exigissem alguns deles uma preparação intensiva e cada uma das pessoas que aguardavam pela subida poderiam escolher um pico com mais de 4000 metros: existem 82 nos Alpes.

Liv Sansoz já os escalou a todos e é ela a primeira pessoa a quem perguntamos se o Breithorn, o pico de 4164 metros que afinal nos espera, foi uma boa alternativa. “É um pico de 4000 metros mais fácil, principalmente porque começamos a caminhar de um ponto mais alto, mas a vista é incrível. Sentes as montanhas à tua volta e estás mesmo perto do Matterhorn e das montanhas Monte Rosa”, diz.

Campeã mundial de escalada pela selecção francesa, a alpinista francesa escalou o Mont Blanc, o pico mais alto dos Alpes, pela primeira vez aos 14 anos.

Quando fez 40, em 2017, começou o projecto de escalar os 4000+m num ano. “Não estava a tentar ser rápida, estava a tentar fazê-lo de forma segura e consciente”, conta Liv Sansoz. A ideia era chegar à base das montanhas de comboio ou bicicleta, não usar teleféricos para subir e descer com um parapente.

“É uma maneira justa de escalar montanhas. Alguém que está nas montanhas todos os dias vê muito facilmente as mudanças causadas pelo aquecimento global, mais do que se vives numa cidade ou ao nível do mar”, diz a atleta. “Queria mostrar como podemos ter muitas aventuras fantásticas na Europa, sem ter de apanhar um avião para a Patagónia ou para o Paquistão”, explica.

Os desportos de montanha, especialmente em países ricos como a Suíça, defende, deveriam ter a responsabilidade de liderar a transição da indústria do desporto e inspirarem outras indústrias, como a do turismo, a fazerem a própria transição energética. “As pessoas vêm de longe para as visitas e podes ter um pequeno impacto ao fazê-las pensar na forma como se vão deslocar.”

A subida

O Breithorn (4164 m) é o primeiro pico de muitos alpinistas. Embora a subida não seja vertiginosa, é excelente para quem testa pela primeira vez a sensação de ar alpino elevado, sempre acompanhada por uma guia.

Ao contrário do Allalihorn, o cume na popular comuna de Zermatt foi “explorado todos os dias desde o início de Junho”, diz Rocío, já na telecabine que nos deixará a 3883 metros acima do nível do mar, muito próximos de território italiano, no Klein Matterhorn, a estação de montanha mais alta da Europa.

Para distrair os nervos do início da subida, imaginei Lucy Walker a chegar ao topo do Matterhorn de saias compridas e chapeuzinho, em 1871 (e, alegadamente, alimentada a uma dieta de champanhe e pão-de-ló).

O primeiro tropeção na corda relembrou a importância de olhar para o caminho e manter os pés bem paralelos, em vez de me perder a imaginar pioneiras da era Vitoriana ou a pensar no fim trágico das dezenas de borboletas que chegavam até ali empurradas pelos ventos mais quentes.

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O Matterhorn é a famosa montanha do Toblerone Reuters

Também me lembrou de uma interacção na semana anterior, ainda no Porto. “É isso a igualdade de género?”, atirou-me um amigo próximo, a meio do jantar. Tinha acabado de lhe contar que iria subir a minha primeira montanha de quatro mil metros, nos Alpes Suíços, numa subida só para mulheres. O tom dele era de gozo e a pergunta apanhou-me desprevenida.

Os objectivos do projecto 100% Women sempre me pareceram evidentes. “Foi muito difícil encontrar 20 mulheres guias de montanha certificadas na Suíça”, contou-me Sabina Brack, que antes de criar a “campanha de mulheres para mulheres” era responsável no Turismo da Suíça pela área das caminhadas ao ar livre — essas sim, com uma visível sobrerrepresentação feminina.

No país, diz existirem “40 guias mulheres” e “zero instrutoras femininas”. Existe um hiato nas actividades mais aventureiras tão profundo como as fendas a que temos de estar atentas. Curiosamente, no entanto, a Associação Suíça de Guias de Montanha é presidida por uma mulher, Rita Christen, a primeira em mais de 100 anos.

Para uma entidade turística também há interesse no potencial económico de um novo grupo-alvo, mas “a campanha de mulheres para mulheres” parecia almejar mais do que vender os programas de montanhismo e desportos radicais direccionados para mulheres.

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“Normalmente quando é um tópico para mulheres é bem-estar e compras… os clássicos. Mas fazer montanhismo e feminismo não é clássico de todo”, ri-se.

As mulheres não vêem outras mulheres e são mais facilmente intimidadas. “Ou quando aparecem são representadas de forma estereotipada: atrás de um homem ou então a típica mulher branca e loira, magra”, diz Sabina (e o site da entidade de turismo não é excepção da falta de representatividade).

Fã de metáforas, a guia Caroline George pensou no conceito de uma “montanha invisível que as mulheres têm de escalar antes mesmo de começarem a subida”.

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Nicole Schafer
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Caroline Fink

“As pessoas vão ter com os meus clientes homens a pensarem que eles são os guias. Existem estas pressuposições e as mulheres experienciam todos estes obstáculos, mas não é nada que seja tangível ou palpável”, explica.

“É um olhar na telecabine ou o elogio paternalista quando chegamos ao topo”, comentava a sul-africana Itumeleng Mehale. “Especialmente se és uma mulher negra.”

Claro que também existem outras barreiras bem mesuráveis, como os custos de uma viagem à Suíça e as tarifas dos guias.

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A sul-africana Itumeleng Mehale Nicole Schafer

O Turismo da Suíça abriu um concurso para dez vagas (e recebeu mais de 830 candidaturas), mas ainda assim dificilmente as montanhas de vistas irrepetíveis serão acessíveis para mulheres de contextos menos privilegiados.

Não tenho a certeza de que sozinha teria chegado ao topo do Breithorn.

As pausas em grupo ao longo do caminho, que se assemelhava a subir degraus molhados, também ajudaram quando o ar parecia não encher mais os pulmões (a altitude não é a única culpada). Muitas delas desesperaram a líder da nossa corda, que a meio de uma filmagem de drone se exasperou: “Esta obsessão pela ‘criação de conteúdos’! O que é o ‘conteúdo’? A vida é conteúdo em si mesma.”

Mesmo não apoiando a fila gigante de humanos em ambientes frágeis como os glaciares e as montanhas, o impacto da imagem que faz lembrar um camimontnho de formigas montanha acima é inegável. “Acho que foi por causa desta energia, da cumplicidade do grupo e do espírito de união que todas chegaram ao topo, sem incidentes”, resumiu a guia Caroline George.

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Switzerland Tourism / Florence Gross

A Fugas viajou a convite do Turismo da Suíça

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