Liberalização nos transportes depende do investimento na infra-estrutura

O mercado é mais eficiente com mais operadores, mas estes só aparecem se a infra-estrutura – que deve ser pública - for moderna e o sector for regulado.

Foto
Anna Costa

Foi há 25 anos que foi criada a Refer, separando-se assim a gestão da infra-estrutura ferroviária da operação comercial. Portugal era pioneiro na aplicação de uma directiva comunitária que nem sequer obrigava à criação de duas empresas, mas sim a separar as contas entre os investimentos e gastos na infra-estrutura e aquilo que são os proveitos e os custos do negócio do transporte ferroviário.

Na altura dizia-se que a velha e majestática CP, embora amputada de metade dos seus activos, passaria a ser uma empresa ágil e com um grande foco comercial porque ficava liberta do lastro que era a gestão da infra-estrutura. Aliás, dizia-se que o conselho de gerência perdia imenso tempo a discutir os investimentos nas vias férreas em vez de se dedicar à grande mudança de paradigma que era passar a tratar os passageiros como clientes e não como utentes.

A par disso, os mais crentes no funcionamento do mercado saudavam os operadores privados que estariam ao virar da esquina, prontos para operar nos carris portugueses, disputando o negócio dos passageiros e das mercadorias taco a taco com a CP.

Um quarto de século depois, a CP continua a empresa monopolista do transporte ferooviário de passageiros, com excepção da Fertagus, que se dedica apenas ao transporte suburbano num eixo específico (Lisboa-Setúbal) e que apareceu como resposta a um concurso público para uma concessão. Na CP era comum dizer-se que se o Estado oferecesse à então USGL (Unidade de Suburbanos da Grande Lisboa) as mesmas condições que à Fertagus, então a agora designada CP Lisboa até daria lucro.

Estruturalmente houve mudanças no transporte ferroviário de mercadorias. O aparecimento, em 2006, da Takargo (empresa do grupo Mota Engil) foi uma pedrada no charco pois teve de fazer tudo a partir do zero, desde constituir-se como operador até adquirir material circulante. O grupo suíço MSC teve a vida mais facilitada: bastou-lhe comprar a CP Carga quando esta foi privatizada e passar a operar com o nome de Medway (apesar de, desde então, ter vindo a realizar sucessivos investimentos).

Há três meses, a Cap Train, que pertence à SNCF e já operava, pontualmente, em Portugal, comprou a Takargo. E um mês antes o grupo Barraqueiro (que já detém a Fertagus) tinha anunciado que iria constituir-se como operador ferroviário de passageiros para explorar o eixo litoral de Braga a Faro.

E é tudo. Em Portugal o número de empresas ferroviárias (de mercadorias e de passageiros) continua, pois, muito reduzido, longe dos cenários com que se sonhava há 25 anos de um caminho-de-ferro com muitas empresas competitivas. Uma ideia que continua a ser a base das políticas da Comissão Europeia. Ainda em Setembro passado, Henrik Hololei, director-geral da Mobilidade e Transportes dizia em Lisboa que “o transporte ferroviário tem de ganhar o seu papel através da concorrência”.

A roda e o carril

Um relatório do Comité Económico e Social Europeu, de 2021, concluía que “a abertura do mercado e a harmonização técnica não produziram os resultados ambicionados” e que “não há uma correlação entre o grau de abertura do mercado e a satisfação dos passageiros ou o preço dos bilhetes”, pelo que a separação vertical entre a operação e a infra-estrutura não deveria ser imposta aos estados membros.

Duas potências ferroviárias europeias – a França e a Alemanha – foram bastante comedidas na aplicação da directiva e limitaram-se a criar uma holding estatal onde acomodavam a roda e o carril sob um mesmo tecto institucional.

Portugal foi um bom aluno e criou duas empresas separadas para aplicar o modelo. Foi até mais longe e em 2015 criou a IP juntando a ferrovia às estradas. Mas o mercado insistiu em não funcionar e não choveram pedidos de licenciamento para operadores ferroviárias junto do regulador, a AMT – Autoridade da Mobilidade e dos Transportes.

Patrícia Melo, professora no ISEG e investigadora do REM/UECE, diz que isso “é surpreendente por um lado e compreensível por outro, porque o nível de desinvestimento na ferrovia foi muito elevado”. Mas considera que se houver investimento e modernização da rede ferroviária, poderá haver novos operadores, uma situação desejável de aplicação de uma teoria neoclássica: “O mercado é mais eficiente com mais empresas e, se existir uma boa infra-estrutura e vários operadores, haverá uma melhoria da qualidade do serviço e preços mais baixos, tudo num contexto de um sector regulado e onde estivessem claramente estabelecidos indicadores de qualidade de serviço que fossem devidamente monitorizados.”

Admite, contudo, que tal só deverá acontecer no eixo litoral onde há massa crítica em termos de procura e sobretudo quando houver alta velocidade. O país é muito assimétrico e para satisfazer as necessidades de mobilidade do interior será necessário recorrer aos contratos de serviço público.

Manuel Tão, da Universidade do Algarve, nota que, em Portugal, o trajecto mais apetecível é o que está em piores condições: a Linha do Norte. E que isso explica também a ausência de operadores privados. Mas chama a atenção que a liberalização virá sempre de leste para oeste: “O mercado espanhol é mais interessante, já lá estão a SNCF e a Trenitália, pelo que o fenómeno da liberalização só deverá chegar a Portugal provavelmente quando houver alta velocidade ou uma Linha do Norte cuja modernização não avance aos soluços.”

Álvaro Costa, da Faculdade de Engenharia do Porto, também acha que “não há mais operadores ferroviários em Portugal porque a infra-estrutura não é boa e porque ao haver um único operador com um contrato de serviço público para todo o país, isso cria um obstáculo à concorrência”. Por isso, o ideal seria, perante um leque de operadores, o Estado fazer contratos de serviço público com os mais eficientes.

O papel do Estado

Este investigador considera que a separação da roda do carril é para dar contestabilidade ao mercado, ou seja, para que, mesmo havendo uma só empresa, esta opere como se estivesse em concorrência perfeita devido à possibilidade de ser substituída por outra que assine com o Estado um contrato de serviço público mais eficiente.

Isto, diz, é particularmente válido para países ou regiões de baixa densidade populacional onde não haverá lugar para vários operadores. Mas, sobretudo, Álvaro Costa sublinha que o importante é a infra-estrutura estar nas mãos do Estado. “Em Portugal acabamos por ter as infra-estruturas nas mãos dos privados e os operadores nas mãos do sector público quando deveria ser o inverso”, diz. “Isso é um enviesamento porque o que tem carácter monopolista é que deveria estar na mão do Estado e não aquilo que está no mercado competitivo”, conclui.

O exemplo flagrante é o sector aéreo: “Vemos os aeroportos geridos por um monopólio privado de uma empresa estrangeira [ANA] que detém todos os aeroportos do continente e depois temos o Estado envolvido num mercado muito competitivo, com a TAP e a SATA, o que só pode dar mau resultado.”

Um modelo errado que também foi aplicado a um mercado análogo ao dos transportes porque também funciona em rede – a distribuição de energia eléctrica. A REN, diz, deveria ser do Estado.

Mesmo no mercado rodoviário, embora as infra-estruturas sejam da República Portuguesa, os contratos de longo prazo com as concessionárias fazem, na prática, com que auto-estradas e outras vias rodoviárias de grande capacidade sejam privadas.

“Como matriz para pôr as coisas a funcionar bem, a infra-estrutura, que é o acesso ao território, deve ser gerido pelo Estado e a operação pode e deve ser feita pelos privados”, diz Álvaro Costa, que considera que as decisões dos últimos governos sobre as privatizações não foram as mais acertadas: “A ANA não deveria ter sido privatizada, nem a privatização da TAP deveria ter sido revertida porque opera num mercado competitivo e, por isso, as companhias privadas são mais eficientes.”

Já na rodovia a liberalização veio obrigar a mexer no sistema de transportes das áreas metropolitanas. Olhando para a Área Metropolitana de Lisboa, onde o Estado atribuiu concessões por zonas obedecendo a critérios de uniformidade de serviço, Patrícia Melo diz que “a mudança é incrível e vai seguramente induzir um aumento da oferta e uma melhoria da qualidade dos serviços, mas chega com décadas de atraso e não está a ser implementada da melhor maneira”.

A investigadora diz que, em teoria, o modelo da repartição das receitas está bem desenhado, mas vai demorar tempo a perceber de que forma é que este sistema é considerado justo para os operadores e é incentivador para que captem mais mercado. “No fundo é um modelo que funciona numa lógica de complementaridade por oposição à de concorrência, mas é preciso esperar por uma boa monitorização para ver se esse objectivo foi atingido”, diz.

No longo curso, a liberalização dos transportes rodoviários tem trazido novos operadores. Durante décadas o retrato deste sector era o herdado da privatização da antiga Rodoviária Nacional através dos CEP (Centros de Exploração de Passageiros), seguido de uma progressiva concentração com destaque para as empresas do grupo Barraqueiro, que domina sobretudo no Sul e Centro do país, seguida de perto por multinacionais estrangeiras como a Arriva e a Transdev.

A Rede de Expressos, uma pool de empresas rodoviárias, na qual a Barraqueiro e a Arriva têm uma posição dominante, é, ela própria, também dominante no mercado de longo curso, mas tem-se deparado nos últimos anos com a concorrência de novos operadores, como a Flixbus, a Gipsy e a City Express.

O futuro dirá quais as consequências da liberalização no mercado rodoviário de passageiros, mas Manuel Tão alerta que em algumas linhas de longo curso do interior o país ficou menos bem servido. “Há, por exemplo, um território vasto que não é servido pelo caminho-de-ferro, que é o Pinhal Interior, que quase deixou de ser servido por transporte rodoviário de longo curso. Há localidades que deixaram de ter autocarros de longo curso ou onde esse serviço passou a ser muito escasso, porque os operadores se concentram onde há mais mercado e isso é um exemplo de como a liberalização acaba por potenciar a desertificação”.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários