Aprender a largar
Quando um amigo me disse um dia: “amar não é assim”, mostrando a mão fechada; e depois: “é assim” com a mão aberta; não me surpreendeu. Amar sempre foi uma mão aberta. A expressão abrir mão é sinónimo de largar, de abnegar, mas, para mim, também de amar.
Precisava do silêncio e do sossego, de passar umas noites sem a melodia das birras e o compasso dos amuos. Precisava de largar a batuta de maestro, de deixar a orquestra sob outra regência e ir compor um solo ao meu andamento.
Precisava de interromper a vigia constante às crianças que se encavalitam na bancada da cozinha para vigiar as vontades que se encavalitam cá dentro antes que despencassem.
Precisava de largar tudo para perceber se ainda aqui estava, se ainda aqui estou. De manhãs sem logística. De fazer a minha própria mochila. De não ter de antecipar ou resolver incidentes fisiológicos. Precisava de uma folga, de tempo destinado ao repouso, ao descanso e à curiosidade.
Sempre fui boa a largar. A minha mãe conta que no primeiro dia de escola, aos dois anos, lhe larguei a mão e fui a correr, sem olhar para trás. Largava noitadas quando já não me sentia bem. Largava casas, largava cidades, largava namorados, largava livros, sem remorso. Largava discussões, nunca guardei rancor. O deixar ir, para mim, sempre foi fácil. Quando um amigo me disse um dia: “amar não é assim”, mostrando a mão fechada; e depois: “é assim” com a mão aberta; não me surpreendeu. Amar sempre foi uma mão aberta. A expressão abrir mão é sinónimo de largar, de abnegar, mas, para mim, também de amar.
Solta, desprendida, meio ao sabor do vento, meio ao sabor do alento, sempre me considerei desapegada e livre.
É por isso com surpresa e algum embaraço que dou por mim, em viagem, a ligar 18 vezes para confirmar se o portão da piscina está fechado.
O desejo de liberdade e o apego maternal travam um combate aguerrido na minha psique. Isto não é novidade; desde que fui mãe que oscilo entre sonhar com aventurar-me sozinha a fazer um safari no Quénia, por causa da Meryl Streep no África Minha, e sonhar com quintas abandonadas com azulejos por restaurar, crianças à volta de jardineiras sujas de lama e biscoitos caseiros.
Tenho vontade de viajar sozinha para me reconectar comigo mesma e medo da angústia que advém dessa solidão, que tive a oportunidade de comprovar no Verão passado, enquanto vomitava num parque de estacionamento em Ibiza numa despedida de solteira. Ao olhar para o vómito nos sapatos lembrei-me de forma tão virulenta do bolsado dos bebés que passei o resto da noite a chorar, atingida pela culpa e por esse remorso interno que ainda sobrevive nas mulheres, mesmo nas que são feministas e fazem psicanálise.
Continuo a ser a que quer passear, descobrir e explorar. A que secretamente deseja ficar sem bateria no telemóvel num país desconhecido e perder-se em praças de nome impronunciável. Mas, à noite, dou por mim a pensar se as minhas filhas terão bebido água, se os avós sabem que elas só dormem bem com o Mickey de chapéu, se terão posto o Mickey de chapéu ao seu lado na cama. Ou se terão posto o outro Mickey, que é o Mickey das emergências, só para quando não se encontra o Mickey de chapéu. Tenho vontade de mandar mensagem a perguntar se dormem bem e se o Mickey de chapéu está entre elas, a abençoar o seu sono.
Dou valor a uma cama onde me possa mexer livremente, sem pezinhos irrequietos a pontapearam a minha cara madrugada fora. Mas esses pés que todos os dias desestabilizam o meu sono, no quarto de hotel longínquo e silencioso onde estou, e com o qual sonho há meses, inesperadamente, voltam a impedir-me de dormir. “Ninguém deve ter ido confirmar se elas têm os pés frios”, penso. Pego no telemóvel e começo a escrever para enviar aos avós: “Elas estão a dormir de meias?”. Vou ver a meteorologia e estão 34 graus em Lisboa. Pouso o telemóvel e respiro. Está tudo bem.
É importante aprender a largar. Largar sempre foi tão natural para mim que é estranho que agora se tenha tornado numa aprendizagem. Elas estão felizes, a ouvir novas histórias, a serem balançadas noutros colos, a experimentarem novas rotinas. E eu também estou feliz. Precisava de tempo e de espaço para embalar os meus próprios sonhos, mas também para afugentar os meus próprios medos.
É importante sair do ninho para buscar alimento. E regressar bem abastecida de confiança e liberdade.