Vinhos de Portugal no Rio de Janeiro celebra independência reinterpretando banquete imperial

Os chefs Pedro Pena Bastos e Rafa Costa e Silva inspiram-se nos menus de D. Pedro II, num bicentenário em que Portugal se junta às comemorações brasileiras. Vinho de Portugal no Rio decorre entre 3 e 5 de Junho.

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Pedro Pena Bastos, chef do Cura, no Hotel Ritz Four Seasons, em Lisboa DR

O imperador Pedro II do Brasil tinha o hábito de coleccionar ementas das refeições que lhe eram servidas. A colecção, doada à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, é uma porta de entrada privilegiada no mundo gastronómico, naturalmente muito influenciado pela França, da corte brasileira no século XIX, e é ela que vai inspirar dois chefs, o português Pedro Pena Bastos, do Cura, e o brasileiro Rafa Costa e Silva, do Lasai, a preparar o menu que será servido no dia 2 de Junho no Paço Imperial do Rio de Janeiro, harmonizado com vinhos portugueses.

O Vinhos de Portugal no Rio (parte do evento Vinhos de Portugal no Brasil, que também passa por São Paulo) junta-se assim às comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil com esta releitura dos banquetes imperiais, no Paço que foi palco do célebre Fico de D. Pedro I (IV de Portugal, que decidiu não cumprir as ordens da Corte para que regressasse ao país, ficando no Brasil), servida a um conjunto de 60 personalidades brasileiras, a maior parte da área cultural. Esta será uma das muitas iniciativas previstas para uma celebração muito particular, em que o antigo colonizador e o antigo colonizado festejam em conjunto os 200 anos da independência.

“Foi o próprio Governo brasileiro que convidou o português para se associar às comemorações”, explica o embaixador Francisco Ribeiro Telles, escolhido pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros para a coordenação pelo lado de Portugal. “Esta é uma festa brasileira, mas, por todas as razões, Portugal não pode ficar de fora. Não queremos pôr-nos em bicos de pés, mas estamos entusiasmados por participar. Iniciámos contactos com os brasileiros para ver o que poderíamos organizar em conjunto e o que cada país organizaria em separado.” Tal como “a independência [declarada pelo próprio monarca D. Pedro I] foi um acto singular, excepcional”, o mesmo se passa com as comemorações. “Não me lembro de dois países no mundo que estejam a festejar em conjunto uma separação”, comenta Ribeiro Telles.

E se o Brasil aproveita a data para olhar não apenas para o passado, mas para pensar o presente e o futuro, Portugal “também está nesse registo”, assegura o embaixador, que foi representante diplomático em Brasília entre 2012 e 2016. “Vamos organizar, a 23 e 24 de Junho, juntamente com a Gulbenkian, uma conferência sobre as relações Portugal/Brasil a que chamámos Perspectivas de Futuro, em que a ideia não é tanto revisitar o passado mas perspectivarmos as nossas relações para o futuro.” Nesse encontro, especialistas de diferentes áreas vão discutir questões ligadas a estratégia, economia, cultura, inovação e ciência.

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Rafa Costa e Silva, do Lasai, no Rio de Janeiro Ana Branco/O Globo

No Porto estão previstas algumas celebrações, com destaque para um concerto, a 12 de Outubro, na Igreja da Lapa, cujo órgão está a ser reabilitado, e com partituras de D. Pedro, que, como compositor, foi o autor do Hino da Independência. Também a Universidade do Minho está envolvida nas comemorações, com o projecto de um “estudo do fluxo migratório permanente entre Portugal e o Brasil ao longo dos tempos e até aos nossos dias”, a realizar por investigadores portugueses e brasileiros.

Um “projecto de muito fôlego” que está a entusiasmar Francisco Ribeiro Telles é o que está a ser desenvolvido com a Orquestra Metropolitana de Lisboa para a constituição de uma Orquestra dos Mares, “com jovens músicos brasileiros e portugueses e que possa vir a associar músicos de países africanos, Cabo Verde, Angola, Moçambique”. A ideia é que o bicentenário seja o “pontapé de saída” desta iniciativa, que já conta com algum financiamento de Portugal, mas aguarda ainda o do Brasil.

Para “assinalar a modernidade nas relações” entre os dois países, será apresentada pela primeira vez em Portugal, no edifício da Cordoaria, em Lisboa, uma grande colecção de arte moderna de um coleccionador luso-brasileiro, que só foi exposta anteriormente em Madrid.

Todo este olhar para os dias de hoje não exclui, naturalmente, as figuras históricas que foram as grandes protagonistas da independência – nomeadamente D. João VI, D. Pedro I e D. Pedro II. Será que, em relação a elas, o nosso olhar ainda está em evolução? “Sim, sinto isso”, afirma o embaixador. “Quando comecei a ter mais conhecimento relativamente à nova historiografia brasileira sobre o período da chegada da corte portuguesa, primeiro a Salvador e depois ao Rio, e de todo o período até à independência, descobri que os brasileiros tratavam muito melhor D. João VI do que nós. Toda a nossa historiografia fala de um rei que fugiu aos franceses, que era intelectualmente bastante limitado e que casou com uma rainha espanhola horrível. No Brasil, ele é considerado um grande estratega, tudo o que fez obedeceu a uma visão, a saída da corte, enquadrada pela esquadra inglesa, já estava planeada e constituiu um acontecimento único no mundo. E também D. Pedro I e D. Pedro II são tratados com enorme respeito.”

Da mesma forma, a Universidade de Coimbra, onde se formaram muitas das figuras que iriam fazer o Brasil independente, é vista com grande admiração. “Os historiadores brasileiros sempre realçaram o papel que a Universidade de Coimbra teve na formação da independência, no facto de o Brasil não se ter desintegrado como aconteceu com a América espanhola. Alguns defendem que isso se deve sobretudo à universidade, que criou uma elite bastante homogénea.” A Universidade está, em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco, a organizar uma exposição que apresenta (primeiro no Recife, depois em Coimbra) 38 documentos históricos inéditos sobre as relações entre os dois países, entre os quais a matrícula do primeiro aluno natural do Brasil.

Um dos grandes debates do Brasil contemporâneo é o da identidade, e ela é feita também da marca profunda e traumática da escravatura, responsabilidade de Portugal. “A nossa preocupação”, explica Ribeiro Telles, “é, sobretudo nas conferências, dar a conhecer essa diversidade, explicar que há muitos Brasis dentro do Brasil e que se o nordestino e o gaúcho são muito diferentes, isso só enriquece o país.”

A festa é do Bicentenário, mas as comemorações deste mesmo evento realizadas há um século também serão evocadas por um outro facto histórico: a primeira travessia aérea do Atlântico Sul por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, em 1922. Através de um simulador que oferece uma experiência imersiva, os participantes no Vinhos de Portugal terão a possibilidade de viver (em parte) a aventura com a qual os dois aviadores portugueses celebraram a independência do Brasil há precisamente 100 anos.

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