O desvanecer da ilusão coletiva
Esperávamos comportamentos equilibrados e inteligência no diálogo. Não foi o que vimos nos EUA, Brasil ou Índia relativamente à pandemia de covid-19, não é o que vemos hoje em algumas reações sobre a invasão russa à Ucrânia, alegando ações do passado para desculpabilizar erros presentes.
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Diz-se que a História não se repete. Porém, Hegel afirmou que a História se repete sempre, pelo menos duas vezes, ao que Karl Marx acrescentou: a primeira como tragédia, a segunda como farsa.
Olhando para o que se passa na Ucrânia, poderíamos dizer sem hesitações que já vimos esta história! Lembremo-nos da Tchetchénia, da Síria, da Geórgia, do Cazaquistão e da já esquecida “Guerra de inverno russo-finlandesa” em 1939, quando Estaline, como agora Putin, acreditou numa vitória rápida contra um inimigo “menor”, na razão de três soviéticos para um finlandês. Os soviéticos, como agora Putin, não contavam com o espírito de resistência, diríamos hoje, de resiliência do povo invadido.
No final, não houve ganhadores. Embora o invasor tivesse conseguido atravessar a defesa finlandesa, a União Soviética foi desmoralizada e banida da Liga das Nações, a Finlândia foi forçada a assinar um tratado de paz que a obrigava a ceder 10% do território e 20% da capacidade industrial. Repetir-se-á a História na Guerra russo-ucraniana?
Para prever o futuro é preciso compreender o passado. A invasão/agressão russa à Ucrânia não nos pode deixar cair no risco cognitivo de acreditar na farsa da “desnazificação” encenada por Putin nem na teoria de defesa contra um hipotético ataque da NATO. Tal como não nos deve fazer esquecer outras guerras, outras mortes, outras comunidades despedaçadas.
À repetição da tragédia, segue-se a farsa e a ilusão coletiva de que uma III Guerra Mundial, no século XXI, é impensável e de que as democracias neoliberais e as marcas deixadas pelas guerras anteriores levariam os países a resolver os conflitos com recurso à diplomacia.
Outra ilusão coletiva foi a de que os populismos que deram origem a poderes extremistas, de qualquer quadrante, jamais regressariam ao poder. Os factos desmentem cabalmente estas expectativas. Na verdade, o desenvolvimento da comunicação social e o aparecimento das redes sociais agudizou o problema das informações falsas, das distorções interpretativas e da manipulação da opinião pública. Aldous Huxley foi muito claro quando diagnosticou que as sociedades que usam o desenvolvimento tecnológico e científico para a guerra e o domínio de povos não são democracias, mas sistemas opressivos de domínio e extermínio.
Em oposição às sociedades da última fase da modernização reflexiva, esta paradoxal agressão configura riscos associados ao uso da tecnologia e do conhecimento científico em favor de uma ideia delirante de domínio e faz parte da farsa ideológica de sociedades humanamente subdesenvolvidas e totalitárias.
Um tipo de farsa grotesca e trágica que, por força da generalização da educação e da globalização, pensávamos não mais ser possível. Esperávamos comportamentos equilibrados e inteligência no diálogo. Não foi o que vimos nos EUA, Brasil ou Índia relativamente à pandemia de covid-19, não é o que vemos hoje em algumas reações sobre a invasão russa à Ucrânia, alegando ações do passado para desculpabilizar erros presentes.
Vivíamos nos vapores do otimismo generalizado de que na Agenda do século XXI existia um consenso sobre a necessidade de combater as desigualdades sociais, de distribuir a riqueza, de universalizar os benefícios da ciência, de erradicar a fome, as doenças, as guerras e a pobreza, e combater as alterações climáticas.
Supúnhamos que na era do Antropoceno, a nova era geológica dominada pelas atividades humanas, entre os riscos antrópicos que provocam desastres e catástrofes, não estavam incluídas as decisões de invadir países nem aniquilar identidades étnicas e Estados-nação. Estávamos enganados. Ao recair na lógica dos velhos conflitos, as sociedades do Antropoceno agravam os riscos decorrentes da emergência climática. Esta agressão cruel e anacrónica faz retardar processos de transição energética sustentáveis, de restauração de ecossistemas e retroceder nos passos dados no âmbito de uma Agenda de Desenvolvimento Sustentável para o século XXI.
Não sendo evidente que os líderes e as instituições sejam capazes de criar o espírito coletivo necessário, só nos resta esperar que a resposta venha dos povos. O que esperamos dos povos é o notável exemplo de resistência e de resiliência que observamos hoje na atitude dos ucranianos face à barbárie russa. Apesar da monstruosidade dos factos, não podemos abandonar o sonho de um planeta melhor, para as gerações futuras. Investir em sociedades resilientes capazes de impedir que erros do passado se repitam, aprendendo com eles, é imperativo. Essa será a nossa melhor herança.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfco