Especialistas reforçam alerta para riscos do uso de químicos que afectam sistema endócrino
Neste que é o primeiro Dia Europeu da Hormona, é feito um novo apelo aos Estados-membros para que criem leis contra o uso de químicos que podem funcionar como disruptores endócrinos na produção de bens que consumimos todos os dias. A exposição a estas substâncias pode provocar problemas de saúde graves.
“Este é o momento para a Europa liderar o processo legislativo que banirá o uso de inúmeros químicos na produção de cosméticos, vestuário, latas, garrafas de plástico e outros recipientes para alimentos”, defende a Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM), da qual fazem parte médicos, investigadores e outros profissionais de saúde que se dedicam ao estudo e tratamento das doenças endócrinas em Portugal. O alerta dos especialistas reforça a necessidade de pôr em marcha o plano europeu que visa banir milhares destas substâncias químicas nocivas para a saúde.
Num comunicado enviado à imprensa, a Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo alia-se esta segunda-feira, Dia Europeu da Hormona, ao alerta que é feito pela Sociedade Europeia de Endocrinologia e pela Fundação Europeia das Hormonas e do Metabolismo. Juntas, estas entidades apelam, junto da União Europeia (UE) e dos Estados-membros que a compõem, à criação de leis que “banam as substâncias nocivas” com as quais os seres humanos convivem “diariamente”.
No passado mês de Abril, a Comissão Europeia (CE) anunciou um roteiro de proibição de substâncias químicas na Europa, como parte do Pacto Ecológico Europeu, que se traduz na maior remoção de substâncias químicas autorizadas e que há muito grupos ambientalistas e de consumidores pediam. O Gabinete Europeu do Ambiente (EEB, na sigla original), uma rede de 170 organizações ambientais, defendeu que este plano representa um “grande detox”, por ser a maior proibição de produtos químicos tóxicos de sempre.
O processo de proibição de todos os produtos químicos constantes da lista definida pela CE começará dentro de dois anos estimando-se que todas as substâncias terão desaparecido até 2030. A proposta da Comissão Europeia mereceu os protestos “da poderosa indústria química europeia”, o quarto maior sector industrial da UE, mas os governos apoiaram este roteiro, registando-se apenas a oposição da Itália sobre os PVC.
Este plano respeitará as prerrogativas dos Estados-membros ao abrigo do Regulamento REACH, um regulamento da União Europeia adoptado para melhorar a protecção da saúde humana e do ambiente face aos riscos que podem resultar dos produtos químicos, contribuindo ao mesmo tempo para reforçar a competitividade da indústria química da UE. O REACH promove igualmente métodos alternativos para a avaliação dos perigos das substâncias, tendo em vista a redução do número de ensaios em animais.
A urgência de legislar
Esta segunda-feira, no primeiro Dia Europeu da Hormona, a SPEDM faz questão de fazer um reforço de vários alertas, lembrando a urgência de legislar sobre estas matérias. Assim, os especialistas sublinham que mesmo uma exposição a “pequenas doses” de desreguladores pode ter um “grande impacto na saúde” — e que grávidas, bebés e crianças constituem populações especialmente “vulneráveis”. Os desreguladores endócrinos “passam das mães para os bebés durante a gestação e a amamentação”, alerta a associação, que junta “malformações congénitas” ao leque de “doenças graves” que podem resultar da exposição a estas substâncias químicas.
O sistema endócrino é composto por glândulas que têm como função a secreção de hormonas. E actua em interligação com outro sistema, o nervoso. Daí as hormonas serem, no nosso organismo, grandes orquestradoras. Por um lado, têm a responsabilidade de ajustar as quantidades de sal e água nos tecidos (e de açúcar no sangue). Por outro, determinam o nosso crescimento, estando ainda associadas à imunidade, aos processos cognitivos e ao desenvolvimento dos órgãos reprodutores de cada um de nós.
Mas há substâncias químicas, os chamados disruptores ou desreguladores endócrinos, que podem perturbar o sistema hormonal e comprometer gravemente a nossa saúde. Estas substâncias tendem a actuar de forma silenciosa: por vezes, os efeitos adversos que provocam “só são observados muito tempo depois da exposição”, explica, num texto que pode ser consultado no seu site, a Agência Europeia das Substâncias Químicas. Mas contactamos com disruptores endócrinos todos os dias.
A associação refere que é muito extensa a lista de problemas que os disruptores podem gerar. Fala de “alterações no sistema reprodutivo, puberdade precoce, alterações nos órgãos sexuais, alterações no desenvolvimento do sistema nervoso, problemas ao nível da imunidade, tumores e cancros, problemas respiratórios e cardiovasculares, obesidade, diabetes e problemas de desenvolvimento”, por exemplo.
Os disruptores endócrinos vão “contra a lei da toxicologia”
Ao PÚBLICO, a especialista Joana Guimarães, endocrinologista no Centro Hospitalar do Baixo Vouga, explica que existem “milhares” de disruptores endócrinos e que cada um pode actuar de forma diferente no nosso organismo. “Há disruptores que podemos descrever como imitadores: ligam-se aos receptores de uma nossa hormona e começam a actuar como se fossem ela — mesmo em circunstâncias em que não é suposto actuarem”, começa por contextualizar.
Também há desreguladores “antagonistas”. Estes, uma vez ligando-se a um receptor, não começam a actuar como se fossem uma dada hormona produzida pelas nossas glândulas endócrinas, mas “não deixam que ela lá chegue”, impedindo-a, portanto, de desempenhar a sua função normal.
Joana Guimarães diz que um dos grandes problemas dos disruptores é que eles vão “contra a lei da toxicologia”. “É bastante indiscutível que fumarmos um cigarro por dia não é a mesma coisa que fumarmos dois maços: se consumirmos mais tabaco, o dano infligido será maior. Este elo entre a concentração da substância e o efeito nocivo que provoca é válido para quase todos os tóxicos. Mas os disruptores fogem à regra”, conta, fazendo a mesma advertência que é feita pela SPEDM: basta “uma exposição a pequenas concentrações” para existir um risco associado. E uma exposição a pequenas concentrações de desreguladores durante tempos mais prolongados pode provocar efeitos “até mais graves do que exposições a grandes concentrações durante um intervalo de tempo mais curto”.
Mas são assim tantos os produtos do nosso quotidiano que têm substâncias desreguladoras do sistema endócrino na sua composição? Que produtos são esses?
Demasiados para contar
Na verdade, diz Joana Guimarães, seria mais fácil listar os produtos “onde não encontramos essas substâncias”. Insistindo na ideia de que há “milhares de compostos químicos com uma acção disruptiva”, a endocrinologista indica que “os mais falados estão presentes nos plásticos, cosméticos, detergentes, pesticidas e biocidas”.
O bisfenol A, um composto que é usado na produção de plásticos de policarbonato — e cuja segurança vem a ser questionada por especialistas há vários anos —, é um exemplo de um disruptor endócrino. E está em perfumes, detergentes, champôs, sabonetes e pesticidas, refere a SPEDM, indicando ainda que “é possível que as caixas de plástico que usamos para guardar alimentos no frigorífico” também contenham este produto químico. A associação aponta, igualmente, para o metoxicinamato de octila. Este composto orgânico é usado na produção de protectores solares e cremes labiais e, à imagem do bisfenol A, pode actuar como um disruptor endócrino.
A SPEDM alerta ainda que “até na água consumida pelos humanos”, que pode ficar contaminada se com ela contactarem plásticos ou outros materiais com desreguladores na sua composição, podemos encontrar substâncias nocivas.
Malformações congénitas e atitudes individuais
Falando sobre o tipo de doenças ou condições que pode ser provocado pelos disruptores endócrinos, Joana Guimarães salienta que “há um grande número de compostos que, por terem uma acção estrogénica”, podem contribuir para um “aumento da infertilidade masculina”.
Lembrando, também, que os desreguladores a que uma mulher grávida é exposta “percorrem o cordão umbilical e, como tal, são transmitidos ao feto”, a especialista diz ainda que os químicos podem levar a casos de criptorquidia. Trata-se de uma malformação que, de acordo com a Metis, plataforma digital de educação para a saúde, é caracterizada “pela ausência no saco escrotal de um ou ambos os testículos”. Fica ou ficam como que retidos na cavidade abdominal do recém-nascido.
A endocrinologista acredita ser “completamente impossível” conseguirmos retirar os disruptores do mercado, tendo em conta a sua prevalência. Mas diz que já foi mais difícil barrar a comercialização de um produto. “Agora existe este conceito da precaução. Tempos houve em que tínhamos de demonstrar que um produto tinha risco comprovado para ser retirado do mercado. Agora, não é preciso tanto. Se os fabricantes não conseguirem demonstrar que os produtos são seguros, eles já não devem ser utilizados. Pode parecer que não, mas isso faz muita diferença”, refere.
A especialista diz que “não conseguimos viver sem determinadas coisas”, mas salienta igualmente que, mesmo que a maioria dos produtos com disruptores na sua composição continue a ser comercializada durante muito tempo, há “atitudes individuais” que podem ser tomadas e resultar na redução de riscos. “Utilizamos muitos protectores solares, cremes hidratantes e cosméticos antienvelhecimento que, se calhar, não precisamos de utilizar todos os dias”, afirma. “Não precisamos de ser radicais e deitar fora os nossos telemóveis [até o ecrã táctil do nosso smartphone é fabricado com recurso a desreguladores, indica Joana Guimarães], não é isso que se pretende. O que se pretende é uma redução da utilização de produtos que se calhar, nalguns casos, não são tão essenciais como pensamos”, diz.
De qualquer modo, Joana Guimarães acredita que vamos ser capazes de encontrar algumas alternativas aos disruptores endócrinos no futuro. “Se a ciência evoluiu para descobrir a acção destes compostos no nosso organismo, terá de evoluir para descobrir compostos que não tenham uma acção igual” e possam substituir os desreguladores na composição dos produtos que consumimos diariamente, considera.