Aborto: querem mesmo reabrir as feridas do passado?
Portugal resolveu a questão do aborto em 2007. A nossa lei é um bom exemplo de como a democracia permite serenar as fracturas sociais.
O Tribunal Constitucional quer cooptar para juiz o professor catedrático António Almeida Costa. Há quem se oponha à ideia, por causa de umas opiniões retrógradas que o escolhido escreveu há quase quatro décadas, contra o aborto, agora desenterradas ao estilo americano para o denunciar. Com típico deslumbre provinciano, já nos querem a ombrear com os Estados Unidos, tratando este caso doméstico como se fosse igual ao da reversão da jurisprudência liberal do Supremo Tribunal acerca da interrupção da gravidez.
Tudo isto é um absurdo. Portugal resolveu a questão do aborto em 2007 e hoje não existe qualquer corrente de opinião séria contra a solução do aborto livre até às dez semanas de gestação. Não há nenhum movimento por uma maior restrição ou por uma maior liberalização daquele direito. As razões da acalmia são evidentes. Primeira: a despenalização do aborto ocorreu através do processo político democrático, em referendo e no Parlamento. Segunda: a lei é vista pela generalidade das pessoas como sendo equilibrada, porque concede um prazo razoável para o exercício da liberdade de escolha, sem limitar desproporcionalmente o direito à vida intra-uterina.
Haverá seguramente quem ache que a lei deveria prever um prazo maior. Assim como também existe ainda muita gente desconfortável com a abertura legal, incluindo pessoas com relevância nos partidos políticos. Porém, nenhum partido tem na sua agenda a revogação ou a alteração do regime em vigor. Nem sequer o CDS ou o Chega. Mesmo as pessoas com opiniões íntimas mais fortes foram aparentemente aceitando o compromisso a que se chegou. A nossa lei do aborto é um bom exemplo de como a democracia permite serenar as fracturas sociais.
Contraste-se o caso português com o dos Estados Unidos. Se o tema do aborto incendeia há décadas a política americana, é precisamente porque nunca se lhe conseguiu dar uma solução política. Os Estados Unidos não têm uma lei do aborto. Têm várias leis estaduais, dependentes da regra estabelecida pelo Supremo no precedente do processo Roe v. Wade, de 1973. Regra essa que diz que o direito ao aborto não pode ser restringido até ao limite da viabilidade do feto, cientificamente colocado hoje por volta das 24 semanas. Segundo uma fuga de informação, que revelou o rascunho de uma futura decisão, o Tribunal prepara-se para reverter o precedente (validando uma lei do Estado do Mississippi que, aliás, é mais liberal do que a portuguesa, porque admite o aborto sem condições até às 15 semanas)
A verdade é que esse precedente nunca foi minimamente consensual na sociedade americana, nem quanto ao limite da viabilidade do feto (muito para lá da média dos países mais permissivos) nem quanto aos pressupostos acerca do que a Constituição impõe neste tema aos legisladores federais e estaduais. O rascunho cita o constitucionalista Akhil Reed Amar – um académico liberal da Universidade de Yale, que se declara “pro-choice” e “anti-Roe”. Vale a pena escutar a entrevista que deu há dias no podcast Honestly, da jornalista Bari Weiss, para perceber como a fragilidade do direito ao aborto nos Estados Unidos resulta da fragilidade jurídica do próprio precedente que o sustenta.
Se o Supremo reverter de facto o Roe v. Wade, não estará a proibir o aborto. Bem ou mal, estará simplesmente a declarar que a Constituição americana nada diz sobre o assunto. Isto é, que não é àquela ultraminoria de nove juízes que cabe decidir em que condições o aborto pode ser legal: é aos representantes políticos do povo, a nível federal ou estadual, através de processos democráticos que produzam compromissos justos e leis com apoio maioritário, estável e duradouro.
Foi exactamente isso que se fez em Portugal, onde a discussão sobre o direito ao aborto está fechada. Será que quem anda a querer reavivar por cá as fracturas do passado, para brincar às guerras culturais americanas, está consciente do risco de a querer reabrir? Duvido.
O autor é colunista do PÚBLICO