Não há Saúde sem Saúde Mental: o combate ao estigma e o direito à esperança

É preciso, de uma vez por todas, reconhecer que ter uma doença mental não é sinónimo de ser doente mental. Ter uma doença mental é apenas uma das caraterísticas da pessoa, que só por si não a deve definir.

Quando tantas vezes paramos para pensar e nos questionamos porque é que, em pleno século XXI, continua a haver tantos obstáculos à inclusão de pessoas com doença mental, que continuam a ser alvo de discriminação e a viver a doença com vergonha, medo e silêncio, a resposta tem sempre como raiz comum o estigma.

Quer estejamos a falar da cor da pele, de religião, de orientação sexual ou de doença mental, o estigma é um construto que envolve o conhecimento (ou a falta dele, levando à manutenção de mitos e crenças), atitudes (sob a forma de preconceitos) e comportamentos de discriminação.

Apesar de existir hoje em dia uma maior acessibilidade ao conhecimento, este facto nem sempre se traduz numa mudança de atitudes e comportamentos, continuando a atribuir-se rótulos negativos às pessoas com doença mental. Continua a dizer-se que são perigosas, violentas, imprevisíveis e incompetentes ou até mesmo responsáveis pela sua própria doença, quando sabemos que estão até em maior risco de serem sujeitas a violência ou abusos.

Este conceito não abarca apenas a forma como os outros vêm alguém com doença mental (estigma social), ou como a sociedade se organiza nos seus padrões e crenças estruturais, mas também a forma como as próprias pessoas com doença mental se veem (auto-estigma), interiorizando uma visão desvalorizada e preconceituosa sobre elas próprias, baixando expectativas e moldando a sua própria identidade.

O estigma tem múltiplas consequências negativas, como a relutância em procurar ajuda médica ou o abandono do tratamento (fugindo do rótulo de “doente mental”), o isolamento (pela sensação de que se é diferente, pelo afastamento dos outros ou pela falta de compreensão), a exclusão social, o bullying, assédio, a limitação no acesso ao ensino e ao emprego e a associação à pobreza.

O estigma e a discriminação são dos principais fatores responsáveis pelo baixo nível de investimento económico e político em saúde mental em muitos países, o que por sua vez reduz o acesso aos cuidados de saúde e contribui para o excesso de morbidade e mortalidade destas pessoas.

O estigma em geral, e não só em relação à doença mental, é algo de muito íntimo em cada um de nós. Podemos socialmente ser adequados naquilo que fazemos, na forma como achamos que devemos agir, mas, no fundo, mantermos ideias de desvalorização e afastamento das pessoas portadoras de determinadas características, em torno da ideia de uma sociedade que queremos “normal”, ou pelo menos desejando que nada disto envolva o nosso espaço, ou nos toque de perto, ou seja, “tudo bem, desde que longe de nós e da nossa família”.

Sendo algo de tão relevante e tão enraizado, de que forma é possível provocar mudança?

- Começar cedo, nas escolas, transmitindo conhecimento credível (combatendo mitos, ideias erradas), explicando que a doença mental é afinal de contas muito frequente (uma em cada quatro pessoas poderá experienciar problemas de saúde mental ao longo da sua vida) e que quem tem doença mental, ou os seus familiares, não está sozinho;

- Promover o contato e o conhecimento próximo com pessoas com doença mental, já que tudo muda de figura quando percebemos que alguém de quem gostamos, que conhecemos, que admiramos é, também ele, portador de doença mental. É esta proximidade que nos faz derrubar barreiras e questionarmo-nos sobre ideias feitas que nos foram sendo transmitidas ao longo dos anos, de forma muitas vezes subliminar e nem sempre percebida conscientemente;

- Garantir o acesso ao melhor tratamento possível, respeitando direitos humanos, conciliando proximidade e diferenciação, de forma integrada e multidisciplinar;

- Reforçar o financiamento para a saúde mental, criar oportunidades e trabalhar com os vários parceiros envolvidos;

- Promover o empowerment das pessoas com doença mental e das associações que os representam, contrariando o auto-estigma;

- Abordar estas questões na sociedade, através da arte, da cultura e do debate, criando oportunidades de partilha e reflexão sobre estas vivências;

- Identificar e questionar atitudes estigmatizantes no seio das nossas famílias, com os nossos amigos, ou em contextos mais alargados, dando voz a uma luta que deve ser de todos nós.

É preciso, de uma vez por todas, que deixemos de tomar a parte pelo todo e que consigamos reconhecer que ter uma doença mental não é sinónimo de ser doente mental. Ter uma doença mental é apenas uma das caraterísticas da pessoa, pelo que só por si não a deve definir, e que não existe uma linha direita que separe fortes e fracos, saudáveis e doentes.

Só desta forma poderemos ter esperança de caminhar para uma sociedade mais justa, mais tolerante, e mais inclusiva, em que possamos ver-nos por inteiro, com tudo aquilo que realmente somos, nesta enorme diversidade que nos caracteriza.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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