Conselho de Cidadãos de Lisboa quer reduzir em 80% a entrada de carros até 2048 e o fim das casas devolutas
Primeira edição desta iniciativa do município decorreu este fim-de-semana. Participantes dizem ter sido um processo positivo, com muitos pormenores a afinar, mas que repetiriam a experiência. Os “embaixadores” nomeados por cada grupo vão agora acompanhar o desenvolvimento e implementação das propostas.
Tudo começou numa meia-lua de cadeiras em pleno Salão Nobre da Câmara Municipal de Lisboa, onde quase 50 (foram 47, para sermos exactos) “estranhos” se sentaram lado a lado para discutir o que pode, afinal, a capital fazer em matéria de alterações climáticas. E seria ali que, no final de dois dias intensos de trabalho, seriam apresentadas as conclusões do primeiro painel do Conselho de Cidadãos de Lisboa, sobre um conjunto de medidas e de recomendações que o município se compromete a considerar e a executar. Entre elas, estão sugestões que afectam, claro está, o dia-a-dia de quem vive e trabalha em Lisboa. E que começaram precisamente pela habitação — ou pela falta dela — e passaram por uma redução radical dos carros na cidade.
O primeiro grupo a apresentar as suas propostas começou um “grito de ordem”: “Lisboetas procuram-se.” Face à dificuldade que é hoje conseguir uma casa a preços comportáveis na cidade, problema que tem empurrado milhares para fora da capital, este grupo recomenda ao município que tome medidas para requalificar as suas casas que estão fechadas, devolutas, e as devolva à cidade. Seria “uma forma inteligente e rápida” de ajudar a colmatar essa dificuldade no acesso a habitação acessível.
Depois de uma semana em que reacendeu a discussão sobre a mobilidade urbana, com a aprovação de uma proposta que prevê a redução da velocidade em 10 km/h na cidade e o fecho da Avenida da Liberdade e de outras ruas nas freguesias aos domingos e feriados, os cidadãos deste conselho deixaram claro as metas que almejam para a cidade: reduzir em 80% a entrada de automóveis na cidade e na Área Metropolitana de Lisboa até 2048.
A medida é ambiciosa, mas os munícipes acreditam que pode ser atingida se avançar e se se mantiver a gratuitidade dos transportes públicos para os mais jovens e os mais velhos, com o reforço das carreiras de bairro e a coordenação dos horários dos vários meios de transportes nas estações de interface para que as viagens sejam mais eficientes na sua duração, que se optimize a mobilidade sustentável, por exemplo, como ciclovias, mas que estas não “roubem” espaço ao peão. E ainda que a fiscalização das trotinetas e bicicletas abandonadas nos passeios seja mais apertada e que seja implementada uma rede radial de transporte público, com metro de superfície.
Este grupo propôs ainda a criação de “superquarteirões”, inteiramente pedonais, à semelhança dos que existem em Barcelona, numa lógica de projecto-piloto a ser experimentado, por exemplo, nos bairros de Alvalade. E ainda a construção de silos automóveis nas zonas residenciais à entrada da cidade, “onde as pessoas vivem”, precisamente para evitar a entrada de carros na cidade.
Uma competição de sustentabilidade e um provedor do Munícipe
Para os cidadãos que trabalharam ideias sobre o espaço público, é fundamental criar na cidade “um jardim em cada esquina” e torná-los áreas de estada mais agradáveis e não meros espaços de passagem. Propõem ainda que se plantem mais árvores e se recuperem os “corpos de água”, como chafarizes da Avenida da Liberdade que estão desligados.
Um outro grupo teve como foco a literacia ambiental e como pode o cidadão ganhar mais ferramentas nesta temática. Entre as conclusões, os cidadãos sugeriram a elaboração de um plano de formação e que esses temas sejam mais discutidos, no âmbito da freguesia. Mas também que os clubes desportivos da cidade assumam essa missão, sejam exemplos de boas práticas para a sensibilização dos jovens. Sugeriram também que o município faça uso do seu “poder de negociação” para que estes temas sejam, por exemplo, introduzidos em telenovelas para que cheguem a mais cidadãos.
Outro grupo, que trabalhou questões relacionadas com a educação ambiental, acredita ser útil conhecer qual é o nível de conhecimento nestas matérias das organizações municipais, dos próprios munícipes. Propõem que seja realizado um inquérito, para depois haver sugestões de soluções concretas, por exemplo, nas escolas. Seja nas aulas de Cidadania ou com visitas de estudo que tenham essa componente ambiental. E ainda aproveitar o facto de os jovens serem utilizadores constantes de smartphones para criar uma app que os desafie a promover as boas práticas ambientais e que por isso recebessem badges, uma espécie de medalhas numa “competição entre quem é mais sustentável”.
No grupo que se dedicou à eficiência energética, foi traçado o objectivo de reduzir em “15% as emissões de CO2 até 2027”, através de intervenções que permitam melhorar a eficiência dos edifícios. Priorizou-se o combate à pobreza energética, por exemplo, nos prédios de habitação municipal, e que as empresas sejam chamadas a exercer os seus programas de responsabilidade social em matérias ambientais para que adoptem também essas práticas e adaptem os seus edifícios.
Já o grupo que trabalhou questões relacionadas com a relação da câmara com o munícipe propôs a criação de um provedor do Munícipe, medida que foi também recomendada há cerca de um mês pela Assembleia Municipal de Lisboa. E deixou uma crítica ao processo para que, nas futuras edições, seja disponibilizada mais informação sobre os temas previamente à inscrição.
Ideias seguidas por “embaixadores”
Na resposta a todas as recomendações, o presidente da Câmara de Lisboa começou por deixar um compromisso: “Estas ideias vão ter seguimento.” Para tal, cada grupo nomeou dois “embaixadores” que vão seguir o desenvolvimento destas ideias com as equipas do município.
E foi comentando algumas das propostas apresentadas: em matéria de habitação, reconheceu que há um levantamento já elaborado que conta com 2000 casas devolutas da propriedade do município, parte das quais não está atribuída nem a aguardar obras.
“Nós só podemos ganhar esta batalha se trabalharmos no longo prazo”, disse o autarca, respondendo ao grupo que trabalhou os transportes e mobilidade. Disse-lhes que a ideia dos “superquarteirões” é “interessante”, mas que se “tem de ir ouvir” as pessoas. “Não conseguimos acabar com os carros de um dia para o outro”, notou o autarca, dizendo que tal terá de ser feito “petit a petit” e não “verticalmente”, como acusa de ter sido feito no passado.
Reconheceu ainda a importância de fortalecer a relação entre os funcionários das freguesias e da câmara, para evitar o “empurrar responsabilidades” entre instituições. E avançou que está a ser elaborado um regulamento para as empresas de trotinetes e bicicletas.
Na sessão de boas-vindas aos participantes, ainda na manhã de sábado, Moedas lembrara o “caminho muito difícil”, de “muito trabalho” percorrido até ali, à criação de um “conselho sem interferência política”, esperando que iniciativa seja início de uma “política 2.0”. “Muitas vezes pessoas querem trabalhar com os políticos, mas não sabem como”, disse, esperando que esta seja uma oportunidade para que tal aconteça.
Logo após as boas-vindas, os participantes tiveram um breve momento para trocarem impressões com os colegas de conselho do lado e depois ouviram quatro “conselheiros” que fizeram um enquadramento dos trabalhos e deixaram alguma informação técnica sobre as alterações climáticas. Foram eles Júlia Seixas, professora na Universidade Nova de Lisboa nas áreas do Ambiente, Energia e Alterações Climáticas, Catarina Freitas, a nova directora municipal do Ambiente, Estrutura Verde, Clima e Energia da Câmara de Lisboa, Pedro Martins Barata, coordenador dos trabalhos da equipa que elaborou o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, e Roberta Medina, organizadora do Rock in Rio, evento que tem apostado nas boas práticas ambientais.
“Esta é a nossa missão”
Seguiram-se depois longas horas de discussão, até chegarem aos sete temas finais para os quais elaboraram propostas. Entre os membros deste conselho, estava Mariana Abrantes, de 81 anos, a mais velha participante. Inscreveu-se porque um dia fora ao edifício do Campo Grande da Câmara de Lisboa e lhe disseram que estava em criação um conselho de cidadãos. Gostou da ideia. “Eu nasci e cresci em Lisboa. Gosto muito de Lisboa”, diz Mariana Abrantes, que foi durante 45 anos secretária da Carris, por onde o avô e os tios também passaram.
Pensou também ser uma oportunidade para lembrar que os vários metros quadrados de terreno entre o Palácio Nacional da Ajuda e a Rua da Bica do Marquês (para o qual há uma unidade de execução em elaboração), há anos abandonados e sem utilização, sejam transformados em hortas e num jardim, com muitas árvores. “Há cem anos, já se dizia que iam fazer um jardim do palácio à Rua da Bica do Marquês”, diz, pouco depois do início dos trabalhos. Como até agora nada se fez, tinha a esperança de poder deixar ali uma chamada de atenção.
Já Daniela Salvador, estudante de 19 anos, ali estava depois de o pai a ter incentivado a ir partilhar as suas ideias, ainda mais depois de saber que o tema eram as alterações climáticas. “Eu vou estar nos meus 40 e o planeta vai estar a ‘arder’. Não se pode esperar como tem sido feito e deixar que o aquecimento global seja um tema para mais tarde”, notou a jovem, ainda muito expectante e ligeiramente céptica no arranque da sessão.
“Não sei se a reunião em si vai provocar alguma mudança, mas acredito que pode incentivar a tomar medidas mais rapidamente e a encontrar soluções à volta das ideias que a câmara já tem e que podem ter falhas”, disse. Um dia depois, quando se preparava para apresentar as propostas do seu grupo, dizia-se mais confiante de que possam, no futuro, ser implementadas, mas não deixou de apontar falhas ao processo.
“A democracia é difícil. Uma coisa que falhou é que [a organização] devia ter dado o tema antes da inscrição para as pessoas se prepararem melhor. Notou-se que várias pessoas estavam cá mais com propósitos e problemas próprios. Foi difícil cooperar”, notou a jovem. Outra falha, disse, foi o facto de não saberem que podiam chamar trabalhadores do município para perceberem que medidas estão já a ser implementadas. “Só soubemos isso hoje”, notou, receando, por isso, apresentar propostas que podem ter “muitas lacunas e falhas” que as tornem inviáveis.
“É um projecto-piloto e talvez possa ser melhorado. Não sei se voltaria a participar, depende de como as coisas forem afinadas. É algo que gasta muita energia”, apontou ainda. Ainda assim, Daniela Salvador ficará ligada a este conselho, uma vez que é uma das “embaixadoras” das propostas que o seu grupo apresentou, ficando por isso responsável por acompanhar a sua execução.
Apesar de algumas falhas e de dinâmicas “um pouco infantis”, como ouvimos de alguns participantes, o balanço é “positivo” e a experiência é para repetir, se tal for possível. Bruno Antunes, gestor de 39 anos, saiu destes dois dias de trabalhos com a ideia de que foi inaugurada “uma nova forma de fazer cidade”, de democracia directa, em que os munícipes fazem a sua voz chegar directamente ao “poder”.
Miguel Tomé, de 41 anos, morador no Bairro 2 de Maio, onde tem algumas “missões”, assumiu o mesmo. “Esta é a nossa missão, mesmo que voluntária.”