As inteligências inúteis e as interrogações necessárias

Os “cândidos” não se apercebem das falácias nem estão disponíveis para lidar com contradições das narrativas por que decidiram, a priori, tomar partido.


Maria João Marques (MJM) publicou neste jornal a 6 de abril um artigo onde equipara o negacionismo do holocausto àquilo a que chama negacionismo no caso do massacre de Bucha, dando o meu nome como um exemplo desse negacionismo, dizendo que eu me interroguei porque teriam os russos assassinado ucranianos que tinham colaborado com eles. Refere, num raciocínio de conveniência, que é preciso uma investigação independente, para logo de seguida acrescentar que “até lá temos de suspender a nossa inteligência e não concluir que a Rússia é a muito provável responsável pelo massacre de Bucha. Afinal, porque pensaríamos ser mais provável ver corpos atirados para valas comuns por um invasor do que pelos militares do próprio país?” Ninguém sugeriu essa conclusão.

MJM não necessita de suspender a sua inteligência, precisa sim de absorver o conceito de prova. Para fundamentar a sua hipótese (não é tese pois não tem sustentação empírica), evoca diligentemente as “imagens de satélite mostrando os corpos nas ruas de Bucha há várias semanas”. Segundo MJM, “tudo pode ser questionado. Há quem questione se a Terra é plana. Sucede que, às tantas, questionar certas realidades tão grandes, tão maléficas, tão evidentes não é nenhum ato de inteligência.” Porém, tal como correlação não é causalidade, também algo que pareça evidente ou óbvio não constitui necessariamente uma prova. Isto é, os factos brutos imediatos não falam sozinhos: têm de ser desintermediados (colhidos nas fontes), sistematizados (organizados) e validados (sujeitos a escrutínio metódico).

A “verdade” de MJM é algo já acabado e imperativo, não admite alternativas plausíveis. Pensar diferente é ser terra-planista. Atitudes assim têm justificado a censura persecutória, como, entre outras coisas, a suspensão da RT e da Sputnik, a autorização de apelos a assassinatos dada pelo Facebook, o cancelamento sem explicação pelo Twitter de vários comentadores destas matérias, ou a caça desportiva e cultural às bruxas. O despedimento do maestro Valery Gergiev, o cancelamento de espetáculos do ballet Bolshoi, ou a remoção de obras de Tchaikovsky do reportório são exemplos dos caminhos perigosos que estamos acriticamente a trilhar.

O artigo de MJM transporta-nos igualmente para o ecossistema do comentariado que utiliza princípios absolutos de demarcação como nós-eles, bons-maus, heróis-vilões, preto-branco. Os especialistas em operações de informações e operações psicológicas classificam estes comentadores em três grupos, concebendo themes and messages dirigidas para cada um deles: os militantes, os dúplices e os cândidos.

Os “militantes” subdividem-se em dois grupos, segundo a sua principal motivação: os ideológicos e os avençados. Os ideológicos recorrem a mentiras e à descredibilização dos oponentes denegrindo o seu carácter, acusando-os de traição, de estarem ao serviço do inimigo, etc. Os avençados têm tarefas definidas por cartas de missão, recebem diariamente o pacote da informação que têm de debitar nos telejornais, têm uma linguagem fluida, não se engasgam, têm o discurso pré-programado.

Os “dúplices” são pessoas bem informadas. Alguns têm longa experiência internacional e tiveram (ou ainda têm) acesso a informação não-pública. Sabem que este conflito se enquadra numa great power politics, sabem que o Ocidente é o principal responsável pela crise ucraniana, e que Washington esteve por detrás do derrube de Ianukovitch, etc. Não é preciso lembrar-lhes o que já foi descodificado por Victoria Nuland, uma das protagonistas-chave do golpe de estado de 2014: “we will inflict a geopolitical defeat on Russia in Ukraine”. Refugiam-se, paradoxalmente, em argumentos não explicativos. Um exemplo consagrado da sua pseudoanálise é a referência ao conflito entre democracias e autocracias (como se a China, por exemplo, caso fosse uma democracia liberal, alguma vez se comportasse submissamente na arena internacional como o Reino Unido ou a Europa). Depois acusam os oponentes de serem intelectualmente confusos e das suas pretensas abordagens geopolíticas se encontrarem em boa parte obsoletas, pois datam da Guerra Fria. Esquecem-se convenientemente do Brzezinski da década de 1990 e de alguns teóricos das relações internacionais.

Temos finalmente os “cândidos”, um grupo constituído por intelectuais, pessoas inteligentes, mas maioritariamente ingénuas. O seu nível cultural (acima da média) leva-os a ter uma elevada autoestima e a falar de tudo com desenvoltura e conhecimento. Não se apercebem frequentemente das falácias que os animam, nem se mostram disponíveis para lidar com contradições das narrativas de que decidiram, a priori, tomar partido. Creem, que o seu intelecto adiantado os torna invulneráveis a spin doctors. Tratam os oponentes como seres mórbidos e acéfalos, com a “inteligência suspensa”. MJM enquadra-se neste grupo.

Não sei se foram russos ou paramilitares ucranianos os perpetradores o massacre de Bucha. Talvez por ter vivenciado situações idênticas, é meu dever interrogar-me sempre sobre elementos factuais que não se articulam facilmente com interpretações simplistas. Poderia dar muitos exemplos, mas limitar-me-ei a dois, que ocorreram no Teatro de Operações da antiga Jugoslávia, um deles vivido bem de perto: o bombardeamento do mercado de Sarajevo, em agosto de 1995; e o massacre de 45 alegados aldeãos albaneses kosovares, na aldeia de Račak, em janeiro de 1999. Ambos contribuíram decisivamente para moldar opiniões e preparar psicologicamente a opinião pública internacional para aceitar e justificar, no primeiro caso, o bombardeamento dos bósnios sérvios e, no segundo, da Jugoslávia. Apesar das certezas do momento, e das imagens a que MJM tanto adere, muitas vezes o que parece não é.

Os dramáticos acontecimentos de Bucha suscitam interrogações incómodas. Porque é que o presidente da Câmara, na visita que fez à cidade no dia 31 de março, após a retirada russa, disse que estava tudo bem e não referiu quaisquer cadáveres (entrevista ao canal Ukraine 24, a 1 de abril)? Porque é que a Guarda Nacional ucraniana, na operação de limpeza realizada no dia 1 de abril, não deu conta de mortos nas ruas? Porque é que a primeira menção aos mortos só é feita três dias após a partida das tropas russas? Porque é que a esmagadora maioria dos corpos tinham uma braçadeira branca? Porque é que corpos encontrados em outras partes da cidade se encontravam próximos de restos da ajuda alimentar russa? Não é notável a coincidência dos corpos na estrada se encontrarem em posições alternadas com uma separação regular entre eles? Será que estamos esquecidos do comportamento das tropas russas noutros locais, quando confrontadas com população hostil, tantas vezes mostrada nas televisões? O que os teria então levado a adotar um comportamento diferente em Bucha? As interrogações não ficam por aqui.

Em última análise, o nosso futuro coletivo vai depender do desfecho desta guerra. Por isso, talvez faça sentido mais pensamento útil e mais humildade intelectual. Porque no final perderemos todos, e bastante.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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