A suspensão da RT e da Sputnik protege a liberdade de informar
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Dias depois da invasão russa da Ucrânia, no início de março, a União Europeia decidiu suspender o funcionamento de dois meios de comunicação social russos na UE: o canal de televisão Russia Today (RT) e a agência noticiosa Sputnik, detidos e controlados pelo governo russo. Quem os conhece, sabe que se trata de veículos de desinformação assumida, à margem dos deveres do jornalismo, misturando, com frequência, factos verdadeiros e falsos, criando uma malha noticiosa que induz em erro. Aliás, em 2019, o canal RT do Reino Unido foi mesmo pesadamente multado pelo regulador inglês por ter infringido deveres de imparcialidade na cobertura do envenenamento do ex-espião russo Skripal, a viver em Inglaterra. São, portanto, instrumentos de propaganda. O que tem consequências especialmente graves em tempos de guerra.
A decisão da UE causou polémica. Houve quem defendesse que não se poderia impedir a Rússia de comunicar a sua versão dos acontecimentos e que se deveria evitar represálias por parte da Rússia. Represálias que, de facto, aconteceram, com a limitação da atividade dos jornalistas ocidentais no país. Barata-Feyo, nas páginas deste jornal, numa das suas Crónicas do Provedor, foi uma dessas vozes. Mas não a única. Na verdade, pareceu prevalecer a opinião que esta suspensão seria censória, impedindo o acesso a informação valiosa para perceber o conflito. Mesmo disponibilizando histórias francamente enviesadas, a forma como a RT e a Sputnik o fazem poderia lançar alguma luz sobre os mecanismos de funcionamento e de doutrinação do Kremlin.
O problema com esta posição é que desconsidera a guerra aberta que decorre em solo ucraniano. Passa-se ao largo, e bastante ao largo, das questões éticas suscitadas pela difusão de informação notoriamente imparcial como instrumento auxiliar da invasão russa. Não se pode esquecer que está em causa a utilização de canais de televisão com licenças para operar em vários países da Europa.
Nos meios jurídicos europeus, a questão foi analisada de uma perspetiva mais objetiva e menos emocional. Considerou-se e bem que a decisão da UE consistiu na defesa do direito fundamental de os cidadãos da UE de receberem informações sem ingerência de poderes públicos (artigo 11 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia). Sobretudo, não pode ser admissível propaganda aberta que possa justificar a defesa de uma guerra de expansão agressiva, que está a ser travada à margem do direito internacional. O que em nada se confunde com a censura arbitrária, praticada nas autocracias. Importava testar este entendimento jurídico onde o direito é aplicado: nos Tribunais.
Pois bem, a RT France, um dos canais RT, solicitou ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) que aplicasse medidas provisórias (o que equivale ao decretamento de uma providência cautelar) para que a decisão da UE fosse suspensa. Esse pedido foi rejeitado, como se soube na semana passada. Além de não considerar justificada a urgência para as medidas provisórias, desvalorizando os argumentos da RT France sobre a sua viabilidade financeira e a sua reputação, o TJUE ponderou também os interesses em causa. E considerou que deveria prevalecer a proteção dos cidadãos europeus contra campanhas de desinformação e desestabilização, que ameaçam a segurança e a ordem pública da UE.
Em suma, segundo o TJUE, especialmente num contexto de agressão militar, os cidadãos da UE têm o direito a receber informação livre de interferências públicas, o que, comprovadamente, não era o caso da RT e da Sputnik. Ou seja, não é tanto a propaganda que está em causa, que pode ser difundida. Mas, sim, a propaganda espalhada no decurso de uma guerra e no seio de uma organização como a UE, que tem como objetivo fundamental a promoção da paz. Basta lembrar o silenciamento da cobertura noticiosa vinda da Rússia e a forma livre como jornalistas ocidentais reportam o andamento da guerra na Ucrânia para concluir pela justeza desta decisão.
Uma vez que este processo haverá de prosseguir e estava somente em causa o decretamento de medidas provisórias, é apenas um princípio de decisão. Mas não de somenos importância. Na ponderação de interesses realizada pelo TJUE encontra-se igualmente um princípio de legitimação da suspensão da RT e do Sputnik no contexto da guerra. Não há liberdade de informar quando essa liberdade é utilizada para desinformar tendo por pano de fundo uma invasão injustificada que causou milhões de refugiados e devasta um país independente. Só assim se protege a liberdade de informar e o direito à informação de todos os europeus.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico