Guterres e Putin: a censura inevitável e o diálogo imperativo
O secretário-geral poderia ter aprofundado os seus bons ofícios, mesmo que estivesse fora do seu alcance evitar a guerra. Considerando a gravidade do que estava em jogo, causou estranheza que – tanto quanto se sabe – não se tivesse encontrado com o Presidente russo. Agora, nas críticas, pode já ter ido demasiado longe.
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O secretário-geral da ONU costuma dizer que, quando duas pessoas estão numa sala, não são, na verdade, apenas duas, mas seis: as duas que, de facto, se encontram; o que cada uma pensa sobre si própria; e o que cada uma pensa sobre a outra. A função da diplomacia é transformar essas seis pessoas novamente em duas, para reduzir os mal-entendidos e as falsas perceções. Contudo, a técnica não terá sido bem aplicada pelo próprio António Guterres em relação a Vladimir Putin. À mesa do Conselho de Segurança, na mesma noite da invasão à Ucrânia, o português assumiu, perante o mundo: “Eu estava convencido de que nada de grave iria acontecer. Eu estava errado.”
Mas como se explica, então, que o líder das Nações Unidas se tenha equivocado em relação à primeira ofensiva militar em 75 anos capaz de pôr em causa a missão fundadora da ONU, que é evitar a Terceira Guerra Mundial? E logo Guterres, o líder ocidental em funções que melhor conhece Putin, o primeiro-ministro da NATO que defendeu uma superaliança na área da segurança entre os EUA, a Rússia e a Ucrânia nos anos 90, o homem a quem Putin pediu para servir de emissário de uma mensagem especial sobre controlo de armas para Bill Clinton, o alto-comissário para os Refugiados que foi um dos poucos funcionários internacionais autorizados a entrar na Ossétia do Sul em 2008, o candidato do Ocidente que se fez eleger secretário-geral da ONU com a anuência de Moscovo.
Como pôde Guterres subestimar um conflito que fez reaparecer o risco de catástrofe nuclear e que já desencadeou uma corrida ao armamento na Europa, assim como um aumento vertiginoso dos preços dos cereais e uma crise de refugiados com potencial para ser ainda mais grave do que todas aquelas que o português enfrentou no ACNUR? E logo Guterres, que, fruto da sua experiência política e humanitária, e dos livros de História que devora todas as noites há mais de 50 anos, tem uma reconhecida capacidade de juntar peças e antever o rumo dos acontecimentos globais, fazendo mesmo os analistas do Departamento de Assuntos Políticos sentirem-se inúteis nos briefings ao chefe.
Bons ofícios
Dez dias antes da invasão, Guterres reuniu-se com Serguei Lavrov por videoconferência, conversou por telefone com o ministro ucraniano dos Negócios Estrangeiros e avisou publicamente que “trocar a diplomacia pelo confronto” seria “mergulhar no precipício”. No entanto, o secretário-geral poderia ter aprofundado os seus bons ofícios, mesmo que estivesse completamente fora do seu alcance evitar a guerra. Considerando a gravidade do que estava em jogo, causou particular estranheza que o português – tanto quanto se sabe – não se tenha encontrado com o Presidente russo. Nem em Moscovo, onde Putin recebeu Macron e Scholz, nem em Pequim, quando coincidiu com Putin na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, realizada nos primeiros dias de Fevereiro, altura em que pelo menos 100 mil soldados russos tinham já sido deslocados para as fronteiras da Ucrânia.
A forma como Guterres reagiu à agressão da Rússia, com as palavras mais duras que, como secretário-geral, alguma vez dirigiu a uma grande potência, tem duas leituras. Por um lado, era crucial censurar Moscovo sem parcimónia – e Guterres chegou a dirigir-se diretamente a Putin em público. Afinal, a invasão tivera lugar, imagine-se, durante a presidência russa do Conselho de Segurança – e no exato momento em que os 15 membros se reuniam para tentar impedir a guerra. Afinal, Putin invocara os direitos à autodeterminação e à legítima defesa para justificar a agressão, depois de já ter equiparado as tropas enviadas para Lugansk e Donetsk a forças de manutenção de paz. Afinal, desde os Acordos de Minsk à Declaração sobre as Relações de Amizade e Cooperação entre Estados, passando pela própria Carta, foi longa a lista de instrumentos do direito internacional grosseiramente violados. Afinal, desvalorizar a ofensiva era abrir a porta a outras igualmente desestabilizadoras, como a possível integração pela força de Taiwan na China. Na noite em que começou a guerra da Ucrânia, também a ONU se sentiu violentada. O seu estatuto e a sua utilidade enquanto fórum central de prevenção, mediação e resolução de conflitos foram seriamente postos em xeque.
Porém, com estas denúncias, o secretário-geral pode já ter ido longe de mais. Nesta reação inicial, uma abordagem mais prudente teria consistido em dirigir-se às “partes em conflito”, expressão a que os seus antecessores recorreram reiteradamente para sinalizar equidistância em momentos críticos. E praticamente todos eles tiveram problemas com Moscovo: Trygve Lie na guerra da Coreia, Hammarskjöld na ocupação da Hungria, U-Thant na crise dos mísseis de Cuba e Kurt Waldheim na invasão do Afeganistão, que também motivou uma sessão especial da assembleia geral.
Guterres pode, inclusive, ter reduzido a sua margem de intervenção junto do Kremlin e, de facto, as duras palavras do ministro Lavrov apontam nesse sentido. Quando acusou o português de sucumbir “à pressão do Ocidente” e de tecer declarações “que não estão de acordo com o seu estatuto”, aquilo que a Rússia disse, na prática, foi que, de momento, não reconhece o secretário-geral como parte neutral. E se Guterres não é visto como um interlocutor válido pela cúpula do regime moscovita, o que dizer da sua subsecretária-geral para Assuntos Políticos e Consolidação da Paz, Rosemary DiCarlo, que até é fluente em russo, mas não deixa de ser uma diplomata de carreira norte-americana?
Partes em conflito
Manter os canais diplomáticos abertos é vital e dialogar com ditadores ou mesmo criminosos de guerra faz parte do quotidiano da ONU. O próprio Guterres, enquanto alto-comissário, exigia às suas equipas que falassem com todas as “partes em conflito” em teatros como o Iémen e a Síria, de modo a garantir acesso em segurança às populações. E foi precisamente esse o exemplo que chegou do Vaticano, quando, logo a seguir à invasão da Ucrânia, o Papa se deslocou à Embaixada da Rússia para pedir a proteção dos mais vulneráveis.
Ora, liderando Vladimir Putin a maior potência nuclear do mundo, tendo poder de veto no Conselho de Segurança e influência direta sobre importantes dossiers internacionais, como as negociações nucleares com o Irão, não é possível à ONU tratar Putin como se fosse Saddam Hussein. Nessa ótica, episódios como aquele que impediu Lavrov de aterrar em Genebra, para discursar no Palais des Nations, podem mesmo vir a revelar-se contraproducentes para a ação diplomática e humanitária. Por mais bizarro que seja ouvir a voz da Rússia no Conselho dos Direitos Humanos, estas viagens proporcionam oportunidades valiosas para, longe das câmaras, os “números 2” ou “3” das delegações encetarem contactos para começarem a desatar o novelo, mesmo que muito lentamente e sem resultados garantidos.
Segundo esta lógica, a ONU não poderá seguir as pisadas – legítimas e em certa medida obrigatórias, até para corresponder às expectativas das suas populações – da NATO, que é uma aliança militar, ou da UE e dos EUA, cujas sanções económicas apontam, no fundo, a um golpe interno no Kremlin. A função inalienável das Nações Unidas é antes encontrar e intermediar o caminho possível para a paz ou, pelo menos, encurtar distâncias e mitigar os efeitos do conflito. No plano humanitário em especial, Guterres terá poucas dúvidas de que a situação vai piorar antes de melhorar e anteverá mesmo uma repetição da catástrofe síria, onde até foram utilizadas armas químicas. Aliás, para coordenar a resposta à crise na Ucrânia, acabou de contratar Amin Awad, o seu antigo responsável no ACNUR justamente para a Síria. Este sudanês ouviu vezes sem conta Guterres afirmar algo que tem de continuar a ser verdade: “Não há soluções humanitárias para problemas humanitários; a solução tem de ser sempre política.”
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico