Em cinco corpos “trans” e não-binários, há uma mão-cheia de causas: “Luto para que me ouçam”
No Dia da Visibilidade Trans, a 31 de Março, uma multidão desceu a Baixa de Lisboa, em celebração, luta e defesa dos seus corpos e identidades. Kai, Tomi, Lola, João e Filipe falam sobre o que é urgente e sobre as causas que levam em cartazes, gritos e bandeiras.
Lola Maria, sobre expressão de género
Em 2016, subiu ao palco de vestido exuberante, lábios pintados e glitter no peito. Foram os primeiros passos de Lola Herself, artista drag, nos bares e discotecas de Lisboa. Para lá das bolas de espelhos, “menina” tornava-se um insulto que outros usavam para a magoar: não a viam como suficientemente masculina para ser homem.
Seguiram-se cinco anos de desconforto, conflito, exploração de si mesma, da sua identidade e expressões femininas. Em 2021, deu mais um passo em frente e ganhou “coragem para gritar ao mundo” quem era: Lola Maria. Hoje, aos 28 anos, “ser menina” já não é usado como ofensa. Gritam-lhe de volta “homem”, só para a magoar: não a vêem como suficientemente feminina para ser mulher.
Agora junta duas lutas. Em palco, Lola Herself exige uma livre expressão cultural, artística e da arte drag. No resto dos dias, como num ringue, Lola Maria combate pelos “direitos ‘trans’, direitos humanos”.
“Ainda é preciso quebrar preconceitos para que nos aceitem, mesmo dentro da comunidade LGBTI+. Mas hoje nota-se que isso está a mudar, estão aqui muitas pessoas que não são queer”, diz, ao olhar para a multidão de corpos e bandeiras que se reuniu no Dia da Visibilidade Trans, em Lisboa. “A minha luta é para que os outros deixem de me ver pela minha aparência. E que me ouçam: eu sou ela, sou a Lola.”
Tomi Ezra, sobre discriminação no trabalho
Um homem branco e “trans” guarda consigo alguns “privilégios”. Se a sua expressão for masculina, se tiver barba e voz grossa, pode apresentar-se sem que outros levantem questões sobre a sua identidade. Tomi, de 23 anos, é “ouvido e respeitado” muitas mais vezes do que mulheres “trans”, reconhece. E, por isso, quer usar o privilégio para gritar pelos direitos de “mulheres racializadas, pessoas não-binárias e pessoas intersexo”.
Mesmo depois da alteração de documentos, em 2019, quando a sua expressão ainda não era tão masculina, ouviu colegas de trabalho a dirigir-se a ele no feminino, sem nunca usarem o nome Tomás, escrito no cartão de cidadão, ou Tomi. Três anos depois, em novos locais de trabalho, já ouviu comentários que o obrigam a pensar: “Ainda bem que não sabem que sou ‘trans’, porque não é seguro. Tenho contas para pagar e não quero pôr o meu trabalho em risco. Isto não devia ser uma ansiedade.”
No Rossio, a celebrar o Dia da Visibilidade Trans, diz agradecer mesmo as más experiências. “Hoje estou bem, nunca me bateram. Fui discriminado de outras formas: no ensino básico, encostavam-me à parede para me fazer perguntas porque era maria-rapaz. Talvez por isso ter acontecido é que hoje eu sou activista.”
Kai Moura dos Santos, sobre identidades não-binárias
À chegada a Bucareste, no aeroporto, usou, por não conhecer o ambiente, a casa de banho feminina, ao contrário do que é habitual. Jogou pelo seguro. Entrou e foi recebido com um olhar de espanto, porque “não devia estar ali”, não parecia mulher. “Não sou suficientemente nenhum dos dois, e isso até me faz sentir bem.”
A manifestação desta quinta-feira, que, segundo a organização, juntou 2000 pessoas, foi uma das primeiras marchas “trans’ de Kai. Só durante os meses de confinamento em 2020 se debruçou sobre a sua identidade de género. “Odiei-me até um ponto em que percebi que algo tinha de mudar. Estive num ninho confortável para experimentar nomes, construir a minha identidade. Tinha muito medo de voltar ao mundo fora de casa.”
Kai é uma pessoa “trans” não-binária. E explica, um de cada vez: é “trans” por não se sentir bem com o género que lhe foi designado à nascença, por ter passado por um processo de transição, “não só física e social, mas pessoal e emocional”; é uma pessoa não-binária por não se reconhecer como homem ou mulher. “Vejo-me como Kai. Para mim, o género nem é um espectro linear, é uma nuvem.”
Aos 21 anos, não vê a luta pela visibilidade como a mais importante, mas sim a da criação de espaços seguros onde não se esconda nenhuma identidade. “Penso nas pessoas ‘trans’ racializadas e migrantes, que aceitam, por exemplo, trabalhos de risco para sobreviver. Depois, penso no reconhecimento da identidade não-binária. Nos meus documentos, passei de um ‘sexo’ para outro, não sendo nenhum deles.” Aliás, acrescenta: não é sequer do sexo que se trata, como diz o cartão de cidadão, mas de uma alteração do género nos documentos.
João Carvalho, sobre cultura e habitação
“Quão polémico vou ser hoje? Que vidas alheias vou perturbar?” são questões que João pondera, ao pensar sobre a forma como exprime a sua identidade. Mantém-se fiel a uma aparência mais masculina, mas, admite, é também uma forma de se defender: “Preciso de viver seguro e confortável.”
Durante a hora de microfone aberto, no final da manifestação de 31 de Março, João, não-binário, chegou-se à frente: “A revolução tem de ser ‘trans’, a revolução tem de ser cultural, a revolução terá de ser transcultural.” Entusiasma-se ao falar da riqueza artística, cultural e intelectual da comunidade a que pertence.
“A tendência para a produção artística nasce da necessidade de expressão e de revolta. Da música electrónica ao voguing e à arte drag, muito associados à expressão da mulher negra ‘trans’, instrumentos de descoberta”, diz ao P3 o antigo estudante de Dança. “Somos artistas futuristas, a arte é provocadora.”
Aos 22 anos, identifica-se como pessoa não-binária, e essa é uma das suas causas: “A identidade binária vai ter de ser reconhecida. Temos uma comunidade com carências graves, pessoas que sobrevivem do companheirismo.” E, não o esquece, a luta pelo direito à habitação toca-o de forma particular. “É uma crise gritante, pouco visível. Quero acreditar que um dia teremos um programa de habitação para responder às necessidades das pessoas LGBTI+.
Filipe Gonçalves, sobre saúde
Aos 13 anos, a primeira menstruação. “Mas, se isto só acontece às raparigas, porque é que me está a acontecer a mim?” Filipe passou os anos da adolescência preso pelo próprio corpo. “Tive dias em que senti que não conseguia respirar, não queria sequer fazê-lo com o corpo que tinha. E tive noites em que nem sabia se ia acordar. É uma prisão.”
Ainda menor de idade, Filipe precisava de autorização de um adulto para iniciar o processo burocrático de transição de género. A autorização estava dada, mas sugeriram-lhe que viajasse, que conhecesse outros lugares, questionaram-no sobre se se lembrou desta ideia de repente. Por isso, esperou, pesquisou mais, encontrou associações que o podiam guiar. Até que, em 2018, a espera se tornou insustentável. Desde então, a relação com a família evoluiu a passos largos.
Guarda uma memória do primeiro dia de aulas no primeiro ano da escola primária. Pediu para ir à casa de banho, saiu da sala e entrou na porta onde estava desenhado um menino. “Quando saí, estava uma auxiliar chateada comigo porque não podia estar ali. A partir desse dia tive medo de ir à casa de banho.”
Hoje, luta por saúde. Já concluído todo o processo de transição, começou a sentir as falhas do sistema de saúde, “como tem qualquer sistema”. No recobro de uma operação ao joelho, reencontrou um entrave que o acompanhava desde os cinco anos. Pediu para ir à casa de banho. Não saiu da cama, não podia andar. Uma enfermeira trouxe-lhe um urinol, inútil para Filipe. “Expliquei o que se passava, e recebi um olhar que me envergonhou muito. Um olhar de nojo, que me acompanha até hoje.”