O revisionismo militarizado da Rússia de Putin


Surkov, conselheiro de longa data de Putin, incluindo para a Ucrânia, que acompanha desde os acontecimentos de 2014 – anexação da Crimeia e guerra no Donbass –, numa entrevista que dá em inícios de 2020, logo após ser afastado do cargo, deixa clara a sua leitura de que o governo em Kiev é ilegítimo, bem como é questionável a própria ideia de um estado ucraniano. Em 2018, Surkov escrevia que a disrupção nas relações com o ocidente após os acontecimentos na Ucrânia em 2014 levariam a Rússia a enfrentar “100 anos (200? 300?) de isolamento geopolítico”. E acrescentava, será que a Rússia se tornará “solitária em quietude ou antes uma nação alfa que afirma a sua liderança face a outras nações?” A resposta parece hoje clara. A invasão da Ucrânia a 24 de Fevereiro de 2022 assim o demonstra.

A política externa russa desde que Putin chega ao poder sublinha de forma consistente a importância do espaço pós-soviético na construção identitária russa, definido como espaço vital e de importância estratégica, em todos os documentos fundamentais, nos conceitos de política externa, e nas estratégias de segurança. A dimensão político-territorial deste espaço é também sublinhada, na forma como Moscovo critica acções de ingerência ocidental, como as “revoluções coloridas” promovidas com apoio ocidental numa lógica de desestabilização deste espaço, como a revolução rosa na Geórgia (2003) ou a revolução laranja na Ucrânia (2004-2005), ou como se posiciona perante a política de alargamento da NATO, como uma ameaça contínua à sua segurança. A disponibilidade para uso da força como forma de contenção de movimentos considerados desfavoráveis ao Kremlin, torna-se evidente na Geórgia em 2008, e cristaliza a política militarizada e revisionista russa nas acções na Ucrânia em 2014. As linhas vermelhas, tornam-se assim parte de uma narrativa que acusa o ocidente de cruzar linhas estruturantes para a segurança nacional russa, justificando uma resposta militarizada. A narrativa que acompanha esta postura mais assertiva de Moscovo para o espaço pós-soviético é visível em diferentes momentos. Em 2005, no discurso sobre o estado da nação, Putin refere que o “fim da URSS foi a maior catástrofe geopolítica do século XX. Para o povo russo, isto constituiu um verdadeiro drama”. E por isso, é premente restaurar o estatuto e glória passados. (Mas Putin disse também em 2005 que na Rússia se diz que quem não lamenta o colapso da União Soviética não tem coração, e aqueles que lamentam não têm cérebro. Acrescentando que é preciso olhar em frente, não para trás, não permitindo que o passado impeça a Rússia de seguir em frente). Mais recentemente quando perguntaram que evento na história do país gostaria de poder alterar, Putin referiu-se exactamente ao colapso da União Soviética. E em Dezembro passado, Putin referia-se ao fim da URSS como o fim “da Rússia histórica”, quando 25 milhões de pessoas nos novos países independentes se encontraram de repente separadas da Rússia, o que constituiu uma “tragédia humanitária em larga escala”. Para Putin, o colapso da União Soviética traduziu-se num passo atrás na história da Rússia. O artigo que Putin publicou em Julho de 2021, referindo-se ao desenvolvimento do projecto anti-Rússia na Ucrânia como demonstrando não haver lugar para uma Ucrânia soberana ou para as forças políticas que procuram defender a sua independência, é ilustrativo da orientação da narrativa sobre o espaço pós-soviético. Mas a recriação de uma União Soviética 2.0 parece um objectivo artificialmente construído, cujos limites sublinham que a Rússia não tem capacidade ilimitada no espaço pós-soviético, tornado este desígnio difícil de concretizar. A invasão da Ucrânia sinaliza desde já, independentemente do desfecho desta guerra, as dinâmicas de resistência a uma política de dominação imposta.

A NATO, em particular o alargamento da Aliança Atlântica, é referido desde cedo, também nas doutrinas militares e conceitos estratégicos de segurança, como ameaça externa à segurança da Rússia. Apesar de mecanismos que visavam consolidação de confiança e transparência, como o Conselho NATO-Rússia, nunca foi possível criar confiança entre a Rússia e a Aliança Atlântica. E argumentos como os de protecção de cidadãos russos fora do seu território, e de não-ingerência externa no espaço pós-soviético têm estado sempre presentes na narrativa, quando a Rússia sente a sua segurança ameaçada. A percepção russa de insegurança face aos alargamentos da União Europeia, e em particular da NATO, que alimentam a narrativa de exclusão russa das questões de segurança europeia, perdeu, contudo, credibilidade no contexto actual. A Rússia tornou-se a maior ameaça à segurança europeia, e a maior ameaça à Ucrânia. Como um colega russo comentava, esta invasão é sinónimo da maior campanha anti-russa, traduzindo as muitas contradições presentes na narrativa e na acção. O objectivo de reconhecimento de prestígio e estatuto internacional, e de afirmação como grande potência num sistema multipolar, estilhaçou. A Rússia age como um estado pária, à margem dos princípios do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, viola mais uma vez a integridade territorial de um estado e o regime de fronteiras na Europa. O revisionismo militarizado russo colidiu com os próprios objectivos que Moscovo havia traçado: trouxe coesão ocidental, reforçou a presença da NATO nas fronteiras mais a leste da Organização, e impactou fortemente no desígnio de reconhecimento de estatuto e prestígio. Se a nação alfa se foi preparando desde 2014 para um maior isolacionismo que lhe permitisse resistir a sanções ocidentais e uma maior política de isolamento internacional, não parece que a mesma nação alfa se tenha preparado para as consequências (potencialmente) não antecipadas que resultaram desta invasão. Resistência no terreno, impactos múltiplos das sanções impostas pelo ocidente, movimentos de contestação interna na Rússia, apesar de um clima altamente repressivo. A nação alfa reforçou o seu isolamento geopolítico e sairá fragilizada desta guerra sem justificação.

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