“A guerra chegou aos museus”: sobre o “excepcionalismo” da cultura

Muitos estão convictos de que, em tempo de guerra, este é o único sector capaz de trabalhar para o diálogo, o respeito, a tolerância, a compreensão entre povos. Mas estamos também nós a infligir um trauma nos nossos colegas ucranianos ao convidá-los, neste momento de horror e devastação, a continuar a dialogar e a colaborar com a Rússia.


“A guerra chegou aos museus”, comenta o director de um museu português no seu Facebook, partilhando notícias que dão conta da retirada de obras de arte pertencentes a museus de diferentes países europeus de uma exposição no Museu do Kremlin; ou das provisões tomadas por museus ucranianos para a protecção das suas colecções. No entanto, a demissão na semana passada de Vladimir Opredelenov, director do Museu Púshkin (um museu nacional), não tem sido igualmente comentada. “A minha atitude perante os acontecimentos mundiais actuais não coincide com a dos meus colegas do Ministério da Cultura da Federação Russa. Espero que isto mude no futuro próximo, mas, com as coisas como estão, sou forçado a deixar o meu amado museu”, afirmou Opredelenov. Esta atitude não mereceu igual atenção e carinho dos profissionais do nosso sector.

Só uma pessoa ingénua pensaria que a guerra não chegaria aos museus. Só se os museus existissem num mundo à parte, isolados da sociedade, é que o que acontece à sua volta não os afectaria directamente.

“Os povos não podem ser culpados pelas decisões e actos dos seus líderes” é um argumento que se repete por estes dias. Não são (não somos) culpados; mas são (somos) responsáveis quando o nosso líder, em nome do nosso país, invade um país vizinho e soberano. É precisamente porque sentiram o peso desta responsabilidade que vários colegas russos se demitiram das suas posições em instituições culturais nacionais (sublinho o “nacionais”, ou seja, financiadas pelo Estado). Uma das primeiras foi Elena Kovalskaya, directora artística do teatro e centro cultural estatal Meyerhold, em Moscovo. A 25 de Fevereiro, segundo dia da guerra, demitiu-se afirmando: “É impossível trabalhar para um assassino e receber dele um salário.”

No entanto, a guerra não chegou agora aos museus e à cultura. A “guerra” sempre esteve presente e nós sempre fizemos parte dela – sem colocar muitas questões, em prol da “arte” e da “cultura”. Várias pessoas elogiaram a decisão do director do Science Museum de Londres, Ian Blatchford, de devolver a “Medalha de Púshkin” que lhe foi entregue por Vladimir Putin. No entanto, esta medalha foi recebida em 2015, ano em que a Rússia (do mesmo Putin) bombardeava civis na Síria, apoiando o regime de Assad. Porque é que Blatchford considerou aceitável receber a medalha nessa altura? Talvez porque achou que não lhe competia “fazer política”? E agora compete-lhe?

No ano seguinte, em 2016, manifestei o meu profundo incómodo ao ver a directora do Museu Bizantino e Cristão de Atenas, Aikaterini Dellaporta, sorridente ao lado do ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, na inauguração da exposição Hermitage: Gate in History. Questionei o museu no Twitter: “O governo de Lavrov está a realizar ataques aéreos contra civis na Síria (incluindo as crianças que vemos na televisão e que partem os nossos corações), apoiando um ditador. Também invadiu um país vizinho e ocupa uma parte dele. Porque é que o governo grego e o Museu Bizantino deram uma oportunidade ao ministro dos Negócios Estrangeiros russo e ao seu governo de parecerem... civilizados?”. Não houve resposta, claro.

A “guerra” faz-se de tantas maneiras diferentes. No caso da Rússia, o Museu Hermitage, nacional, faz parte dela há muito tempo, graças à forte relação do seu director, Mikhail Piotrovsky, com Vladimir Putin. Num artigo intitulado How the Hermitage Museum Artwashes Russian Aggression (numa tradução livre, “Como é que o Museu Hermitage faz branqueia a agressão russa através da arte”), Rachel Spence lembra-nos que “muito antes da invasão da Ucrânia, havia razões para questionar parcerias de entidades estrangeiras, a maioria das quais totalmente acrítica, com instituições estatais russas”. Refere-se especificamente à colecção Morozov, actualmente em exposição na Fundação Louis Vuitton, em Paris, apresentando obras emprestadas do Hermitage, mas também do Museu Estatal Tretyakov e do Museu Púshkin. Embora esta seja uma fundação privada, Macron e Putin contribuem com textos para o catálogo e Putin escreve eloquentemente sobre o poder da diplomacia cultural. O director do Hermitage orgulha-se de ser o homem de Putin nesta “ofensiva cultural” (palavras de Putin) e vice-versa.

Muitos na área da Cultura estão convictos de que, em tempo de guerra, este é o único sector capaz de trabalhar para o diálogo, o respeito, a tolerância, a compreensão entre povos. E, por isso, deve continuar a fazer o que faz. Um “business as usual” que em nada difere do que se faz em tempo de paz. Não só não reconheço nem desejo este “excepcionalismo” na Cultura, como gostaria de partilhar a profunda preocupação que sinto em relação ao trauma que estamos nós também a infligir nos nossos colegas ucranianos ao convidá-los, neste momento de horror e devastação, a continuar a dialogar e a colaborar com colegas russos, porque a arte e cultura devem servir para isso (para quê, para nos embalar?). “Não há como colaborarmos com qualquer russo até que eles venham para a Ucrânia e reconstruam as nossas casas pedra por pedra”, exclamava um colega ucraniano num encontro organizado há dias pelo IETM – International Network for Contemporary Performing Arts. “Respeitamos a sua opinião” foi a resposta da presidente desse organismo a alguém que vive sob bombardeamento, que vê o seu país a ser destruído e que não quer deixar a sua mãe idosa sozinha. Portanto… embalemo-nos.

Olhando para a forma como temos estado a gerir as nossas relações culturais – e, por isso, também políticas com a Rússia (para focarmos o momento concreto que estamos a viver, embora existam vários outros casos), tenho reflectido e defendido no meu blogue, Musing on Culture, a necessidade de um boicote cultural. Todos nós temos de ser muito cuidadosos e vigilantes e não permitir ou contribuir para qualquer acto de discriminação contra profissionais da cultura ou artistas russos (vivos ou mortos) com base na sua nacionalidade. Dito isto, acredito que não devemos, neste momento, colaborar com organizações culturais estatais russas. Não se trata de penalizar indivíduos, embora eles venham a ser afectados (como muitas outras boas pessoas noutras áreas profissionais). Trata-se, em primeiro lugar, de honrar e apoiar aqueles colegas russos que tiveram a coragem de se demitir em protesto, vivendo num país onde o regime pune severamente a dissidência. Trata-se também de ter consciência sobre o que é que essas organizações representam, de quem recebem financiamento e de que forma são usadas para minimizar ou até mesmo encobrir actos de brutalidade, pintando uma imagem de naturalidade e civilidade.

A guerra não chegou aos museus; os museus sempre fizeram parte da “guerra”.

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