Rússia recusa cessar-fogo e acordo para tirar civis de Mariupol, onde as pessoas já se atacam “por comida”

Lavrov não quis discutir um cessar-fogo de 24 horas proposto pela Ucrânia no primeiro encontro entre ministros dos Negócios Estrangeiros de Moscovo e Kiev.

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“Não planeamos atacar outros países e também não estamos a atacar a Ucrânia”, afirmou Lavrov em Antália EPA/RUSSIAN FOREIGN AFFAIRS MINISTRY

Em Mariupol, cidade que espera desde sábado pela abertura de uma passagem segura que permita retirar civis e fazer chegar bens essenciais aos que lá permaneçam “as pessoas começaram a atacar-se umas às outras por comida”. A possibilidade de um “corredor humanitário” na cidade portuária do Sul da Ucrânia foi uma das questões levadas pelo ministro ucraniano dos Negócios Estrangeiros, Dmitro Kuleba, para a sua reunião com Serguei Lavrov, no primeiro encontro de alto nível entre dirigentes de Kiev e de Moscovo desde o início da guerra, há duas semanas. Como noutras questões, a conversa na Turquia terminou sem progressos.

Uma das últimas descrições da situação em Mariupol chegou através de uma mensagem áudio gravada por Sacha Volkov, “número dois” da delegação da Cruz Vermelha da cidade. Volkov afirma que a situação humanitária entre a população de mais de 400 mil é “cada vez mais terrível e desesperada” e que “muitas pessoas dizem não ter comida para as crianças”. Para além dos confrontos por causa da comida, descreve a destruição de carros para retirar gasolina e a pilhagem de “todas as lojas e farmácias”.

“Muitos de nós já começaram a adoecer por causa da humidade e do frio que suportamos”, descreve. O aquecimento, assim como a electricidade, a água ou a rede telefónica não funcionam há vários dias.

Foi nesta cidade que um bombardeamento atingiu na véspera uma maternidade e um hospital pediátrico. Inicialmente, as autoridades ucranianas deram conta de 17 feridos, incluindo grávidas; esta quinta-feira disseram que três pessoas, incluindo uma menina pequena, acabaram por morrer.

O ataque ao complexo hospitalar de 600 camas é prova de uma tentativa de “genocídio”, acusou o Presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky; a Casa Branca descreveu o bombardeamento como “bárbaro” e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse estar convencida de que este acto “desumano, cruel e trágico” constitui um crime de guerra.

Apesar de continuar sem ser possível fazer sair pessoas nas dezenas de autocarros preparados para isso, uns 100 residentes tentaram fugir em carros privados, mas tiveram de voltar para trás, depois das forças russas começarem a disparar, a partir de um posto de controlo, contou à BBC o vice-presidente da câmara, Sergi Orlov. O Kremlin voltou a oferecer a abertura de “corredores humanitários” a partir da cidade para a Rússia, uma sugestão que Kiev já recusara.

Corpos retirados da ruas

Os bombardeamentos não pararam, mas a diminuição dos ataques ao longo de algumas horas tem permitido retirar corpos das ruas: segundo Orlov, foram até agora 1207. Destes, mais de 70 já foram enterrados numa vala comum, descreve a Associated Press.

“Queríamos obter um cessar-fogo de 24 horas, Lavrov disse que Moscovo queria falar de corredores humanitários”, descreveu Kuleba no final do encontro com Lavrov, na cidade turca de Antália. “O primeiro motivo que me trouxe aqui foi a questão humanitária, as evacuações, mas Lavrov não prometeu nada neste ponto”, garantiu o ministro ucraniano, referindo-se especificamente à situação de Mariupol. Kuleba descreveu a reunião como “difícil”, mas disse estar pronto para voltar a sentar-se com Lavrov.

Numa entrevista com a televisão turca TRT logo depois, o dirigente ucraniano sublinhou ainda a sua surpresa pela falta de poderes aparentes de Lavrov para tomar decisões sobre as suas exigências. “Ele veio discutir, mas não decidir”, disse. Presente no encontro, a pedido das duas delegações, esteve o ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Mevlut Çavusoglu. “Gostaria de elogiar Çavusoglu, que realmente fez o possível para facilitar a discussão. A minha impressão é que ele [Lavrov] não tinha autoridade para tomar decisões”, acrescentou Kuleba.

Depois de Kuleba falar aos jornalistas, foi a vez de Lavrov iniciar uma conferência de imprensa que se prolongou por uma hora e onde o ministro russo repetiu muitos dos argumentos que Moscovo tem usado para tentar justificar a invasão da Ucrânia.

“Não planeamos atacar outros países e também não estamos a atacar a Ucrânia”, começou por dizer o chefe da diplomacia russa. “Explicámos muitas vezes: avisámos que estávamos numa situação que constituía um perigo para a segurança da Rússia. Há anos que o denunciávamos, mas ninguém nos dava atenção”, afirmou Lavrov.

"Risco” de enviar armas

O ministro russo sublinhou ainda o “perigo” do comportamento dos chamados países ocidentais. “Aqueles que enviam armas para a Ucrânia e para os mercenários devem entender o risco do que estão a fazer”, afirmou, apontando o dedo em particular à União Europeia, que “violou os seus princípios e valores” ao decidir financiar a compra de armamento que tem estado a fazer chegar aos ucranianos.

O Presidente Vladimir Putin não recusaria uma reunião com o seu homólogo ucraniano desde que o encontro fosse planeado, servisse para discutir temas “específicos” e fosse claro que teria “valor acrescentado”, esclareceu igualmente Lavrov, a propósito de um pedido várias vezes repetido por Zelensky. Garantindo que os russos sairão deste conflito “sem ilusões” e decididos a não voltar a depender do Ocidente, Lavrov também criticou as sanções impostas à Rússia – em Moscovo, Putin descreveu-as como “ilegítimas”.

A Rússia, concluiu Lavrov, está disponível para “discutir garantias de segurança para o Estado ucraniano juntamente com garantias de segurança para países europeus e, claro, para a segurança da Rússia”. “E o facto de agora, a julgar pelas declarações públicas do Presidente Zelensky, um entendimento de tal abordagem estar a começar a tomar forma, inspira um certo optimismo”, afirmou, numa referência ao facto de Zelensky ter sugerido, na terça-feira, que está disposto a recuar na vontade de adesão da Ucrânia à NATO.

Pouco optimista face a novas negociações, Kuleba disse ainda assim estar disposto a voltar a encontrar-se com Lavrov, mas garantiu que “a Ucrânia não se vai render”. “Estamos abertos à diplomacia, mas, se isso não resultar, vamos proteger o nosso país e o nosso povo.”

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