A Igreja Ortodoxa Russa e a invasão da Ucrânia
Moscovo tem pressionado todas as demais igrejas para que não reconheçam a autocefalia ucraniana, servindo-se de todo o poder do Estado russo. Kiril e Putin caminham de mãos dadas.
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Um aspeto muitas vezes desvalorizado ou insuficientemente sublinhado quando se aborda a geopolítica do Kremlin é o papel desempenhado, sobretudo após a ascensão de Vladimir Putin, pela Igreja Ortodoxa Russa.
É assaz conhecida a antiquíssima ambição da igreja russa em constituir-se como a “Terceira Roma” e substituir, assim, Constantinopla como centro da ortodoxia e o Patriarca Ecuménico como primus inter pares. Os episódios de tentativa de criação de uma divisão dentro da Igreja Ortodoxa (c. 220 milhões de crentes) entre ortodoxos gregos e ortodoxos eslavos não é de hoje, assim como não são de hoje as relações tóxicas entre o poder instalado em Moscovo e a igreja russa. Se, por um lado, o cristianismo ortodoxo foi perseguido durante o período soviético e muitos dos seus responsáveis foram martirizados, ainda está hoje por esclarecer a efetiva relação de cooperação e conluio entre o poder comunista e muitos bispos russos.
A eclesiologia da igreja russa tem-se afirmado pela vinculação inabalável ao conceito de território canónico, razão pela qual sempre foi sempre visto com muito maus olhos qualquer tentativa de estabelecimento de outras igrejas no território da União Soviética, desde logo a Igreja Católica, sobretudo as igrejas católicas orientais (ucranianos, rutenos) mas também a de rito latino bem como o protestantismo.
O próprio Estado soviético combateu ativamente o catolicismo de rito oriental, confirmando-lhe o título pejorativo de “Uniatas”, sobretudo a maior de todas as igrejas católicas orientais, a Ucraniana, de rito bizantino, convertendo-a em igreja do silêncio: os seus crentes e as suas propriedades foram compulsivamente transferidos para a Igreja Ortodoxa Russa, após um sínodo fantoche havido em Lviv (sede histórica do catolicismo ucraniano) em 1946.
A dissolução da União Soviética não anulou o facto de milhares de cristãos ortodoxos espalhados pelo seu antigo território permanecerem em obediência ao Patriarcado de Moscovo e essa situação tem sido aproveitada pelo poder pós-soviético como virtuosa para os seus desígnios de continuação do exercício de uma tutela efetiva sobre as antigas repúblicas, sobretudo na Bielorrúsia, na Ucrânia e no Báltico, atuando os seus responsáveis como uma quinta coluna ao serviço de Moscovo.
Mal se distinguindo do Estado russo - o Metropolita Hilarion of Volokolamsk, chefe do Departamento de Relações Exteriores do Patriarcado de Moscovo, lugar anteriormente ocupado pelo atual Patriarca Kirill [Cirilo], atua como um segundo ministro dos Negócios Estrangeiros, deslocando-se incessantemente pelo mundo, nomeadamente o Médio Oriente - o Patriarcado de Moscovo leva muito a sério o facto de ser “de Moscovo e Toda a Rússia”, coincidindo com Putin no entendimento que o conceito de “Toda a Rússia” ou “Todas as Rússias” se aplica ao antigo território do império dos czares e da União Soviética, a que a mitologia do Rus’ de Kiev e do seu Batismo com S. Vladimir oferece a necessária fundamentação ideológica.
Qualquer tentativa de independência (autocefalia, na linguagem ortodoxa) das igrejas das antigas repúblicas face a Moscovo é fortemente atacada, colocando a Igreja e o Estado russos todos os meios ao seu dispor (propagandísticos, financeiros) para impedir ou dificultar seriamente esse desígnio.
Aconteceu com a Estónia em 1996 e aconteceu – com consequências que não devem ser menosprezadas face ao que está a suceder presentemente – e com a Ucrânia em 2019. Uma breve resenha histórica: a pedido do povo e do Estado ucraniano, o Patriarcado Ecuménico de Constantinopla concedeu autocefalia à Igreja Ortodoxa da Ucrânia, revogando o Tomos de 1686, que concedia ao Patriarca de Moscovo o direito de ordenar o Metropolita de Kiev. Moscovo não reconheceu este ato do Sínodo da Igreja de Constantinopla (que é também igreja mãe do Patriarcado de Moscovo) e deixou de comemorar o Patriarca Ecuménico, quebrando relações com ele e com todos os que, de seguida, também reconheceram a independência da Igreja Ucraniana: Patriarcado de Alexandria e Toda a África, Igreja de Chipre, Igreja da Grécia.
Servindo-se, internamente, da sua própria igreja autónoma em território ucraniano (Igreja Ucraniana Ortodoxa do Patriarcado de Moscovo) e atuando no plano internacional, Moscovo tem pressionado todas as demais igrejas para que não reconheçam a autocefalia ucraniana, servindo-se de todo o poder do Estado russo e das reservas financeiras consideráveis posta ao dispor. O resultado é o esperado: muitas igrejas mantêm o statu quo com medo das represálias russas e algumas ou receiam com justificadas razões o poder de Moscovo – é o caso do Patriarcado de Antioquia e Todo o Oriente (terceira Sé da Ortodoxia), sediada em Damasco (et pour cause) – ou dependem das generosas doações financeiras russas – é o caso do Patriarcado de Jerusalém. Outras Igrejas, caso da Sérvia, alinham imediatamente com a posição russa.
Finalmente, a igreja russa tem procedido à invasão do território de igrejas irmãs, seja o do Patriarcado Ecuménico em toda a diáspora ortodoxa, seja, por exemplo, o do Patriarcado de Alexandria em África, para o qual acaba de criar um Exarcado.
O atual Cisma na Igreja Ortodoxa é a tradução eclesiástica do desígnio russo – agora, manu militari – de domínio de um território canónico de que não quer abdicar. Kiril [Cirilo] e Putin caminham de mãos dadas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico