Uma cidade longe das linhas da frente é refúgio para os que fogem de Kharkiv. Mas por quanto tempo?
Dnipro é por agora um oásis livre de bombardeamentos no leste da Ucrânia, onde as únicas filas são as que são feitas à porta das lojas de armas.
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As sirenes de aviso de ataque aéreo não funcionaram no bairro onde Ania morava, em Kharkiv. Por isso, as bombas russas chegaram de surpresa. Depois as explosões tornaram-se mais próximas e mais barulhentas. E não pararam.
A rapariga e os pais encolheram-se no corredor do apartamento, longe das janelas, e ali ficaram quietos. Durante quatro dias, um implacável ataque russo atingiu esta cidade do leste da Ucrânia, suspeitando-se que nos bombardeamentos tenham sido usadas bombas de fragmentação. Zonas civis foram alvejadas, entre elas o bairro de Ania. Só na segunda-feira a rapariga encontrou uma forma de sair dali.
Ania, artista de 18 anos, embalou roupas, o portátil e um bloco de desenho. Teve que deixar para trás o uquelele e os pais, que só foram retirados do local na quarta-feira. A rapariga e a namorada demoraram uma hora a encontrar um táxi, e tiveram que oferecer um suborno ao motorista para que as levasse à estação de comboios debaixo do intenso bombardeamento.
O destino de Ania era Dnipro, cidade a cerca de 200 quilómetros de Kharkiv, a sudoeste, e que ainda não sofreu qualquer bombardeamento.
Os voluntários em Dnipro esperavam receber muitas centenas de pessoas oriundas de Kharkiv na manhã desta quinta-feira. Prepararam escolas, centros culturais, dormitórios vazios e um hotel abandonado para acolher os que fogem de Kharkiv e de outras cidades próximas e sitiadas da região leste ucraniana.
“Sinto que passei por todos os níveis de stress”, disse Ania, que por segurança não revela o apelido. “Primeiro, ficamos com medo. E choramos, não aceitamos. Muitos dos meus amigos disseram que parece que estamos dentro de um jogo de vídeo ou numa simulação – se tirarmos os óculos de realidade virtual fica tudo bem”, disse. “No início estava zangada. Agora aceitei”.
Dnipro não é o destino final para a maioria dos deslocados, que esperam que a cidade seja a rampa de lançamento para a região ocidental da Ucrânia, de onde, eventualmente, poderão passar para a Polónia ou outro país vizinho. Mas uma vez ali são confrontados com a pergunta impiedosa com que se deparam as centenas de milhares de pessoas em fuga: onde é que se está a salvo hoje na Ucrânia?
Por enquanto, Dnipro é considerada segura. Mas os soldados russos já avançaram em Zaporizhia, 80 quilómetros a sul, e podem seguir para Dnipro a seguir. Esta zona faz fronteira com a região do Donbass, onde os separatistas apoiados pela Rússia já estão a penetrar no território que era controlado pela Ucrânia. E se Kharkiv cair nas mãos das forças russas, as unidades ali destacadas podem rumar a Dnipro.
A simples decisão de deixar Kharkiv, enfrentando uma das barragens de bombardeamentos (intensos e ininterruptos) russas mais ferozes desta guerra, é um enorme desafio. O ataque tem muito poucas pausas. Quase não há táxis a circular, muita gente tem que pedir boleia. Os comboios e autocarros para fora da cidade estão cheios.
Na quarta-feira, foi partilhado nas redes sociais um vídeo cuja veracidade não pôde ser comprovada mostrando pessoas a abrigarem-se debaixo de vagões enquanto caíam bombas na plataforma da estação de comboios.
Já passava das oito da noite quando Ania e a namorada chegaram a Dnipro, na segunda-feira. Passaram a noite na estação, até um tio de Ania, Evgeni, as ir buscar às seis da manhã. Estão a viver no pequeno apartamento de dois quartos do tio, juntamente com mais três pessoas e um gato.
Evgeni, que também não quis revelar o apelido por razões de segurança, esperava receber mais três refugiados nesta quinta-feira. O corredor, onde foi encaixado um sofá, foi convertido numa espécie de sala de estar. É também lá que todos se refugiam quando soam as sirenes de ataque aéreo.
Em 2014, Evgeni foi refugiado. Morava na região leste, no Donbass, quando a guerra rebentou entre as forças do Governo da Ucrânia e os separatistas apoiados pela Rússia. Agora juntou-se aos voluntários e às organizações que abriram as portas aos que fogem de um novo e mais devastador ataque russo.
“Aconteça o que acontecer, vou ficar aqui e ajudar o meu povo que não fez mal a ninguém em toda a sua vida”, diz Evgeny. “Porque eles precisam de ajuda e são muitos.”
A Kust, uma organização cultural de Dnipro que costuma organizar festivais de música, é agora um centro de refugiados. O segundo andar de uma cervejaria local tem espaço para acomodar cem pessoas. Os terapeutas estão à disposição de quem precisa. Na quarta-feira, duas crianças sentadas em esteiras no chão, mergulhavam as mãos em tinta verde e colavam-nas em folhas de papel enquanto um voluntário tentava ensiná-las a meditar. Ao fundo da rua, um hotel que foi abandonado mesmo antes da invasão foi reaberto para receber a esperada vaga de refugiados. Tem capacidade máxima para 600 pessoas. Há apenas três dias, não tinha água, aquecimento ou electricidade.
“Tenho as chaves do apartamento dos meus amigos, que deixaram a cidade e autorizaram-me a levar para lá refugiados”, diz Masha Skvortsova, uma das directoras da Kust. “Eu própria mudei-me para casa de um amigo para poder albergar mais gente no meu apartamento. Estamos a tentar fazer de tudo para que tenham conforto”.
A maior parte dos deslocados de guerra estão a dirigir-se para oeste, para cidades como Lviv. Mas é uma viagem arriscada, pois a rota através de Kiev é perigosa devido aos intensos bombardeamentos. O que faz de Dnipro o ponto de passagem lógico para os habitantes da zona leste do país.
Dnipro ainda não foi bombardeda e foi adoptando medidas para se proteger à medida que via cidades próximas serem atacadas. Há muitos postos de controlo dentro da cidade e nos arredores, as montras das lojas estão tapadas, os monumentos estão protegidos das possíveis explosões com sacas de areia. Não há filas à porta dos supermercados nem nas caixas multibanco, mas elas existem à porta das lojas de armas. E já há uma lista de espera para ingressar nas Forças de Defesa Territorial.
Para já, Ania sente-se segura em Dnipro, mas tem família em Lviv se precisar de ir para ocidente. Estava habituada a passar os dias a trabalhar na sua arte e a decidir a cor com que iria pintar o cabelo a seguir – actualmente é cor de laranja claro. Agora, está sempre a ver as notícias mais actualizadas sobre a guerra na sua amada Kharkiv, onde grande parte do centro da cidade já foi destruído. E tenta arranjar tempo para relaxar a jogar mahjong.
Também pensa em como seria regressar a Kharkiv. “Por enquanto, não me parece possível”, diz. “Não posso fazer nada. Mas quando chegar a altura, lá estarei”.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post