Neblina e incerteza

Um dia será possível, de forma desapaixonada e serena, fazermos a verdadeira história deste terrível episódio de guerra na Europa e as verdadeiras motivações dos seus protagonistas


No meio do nevoeiro que envolve os desígnios últimos de Putin e a verdade sobre a evolução do conflito, no meio da contra-informação que ambas as partes vão destilando, uma coisa é certa – a recuperação económica de dois anos de crise pandémica vai ser fortemente afetada, em especial na Europa, por esta estranha guerra de duração imprevisível.

No meio do crescendo de comportamentos irresponsáveis dos dirigentes da Rússia e da Ucrânia, Putin optou pela mais insana das decisões, a de invadir o seu vizinho ucraniano com vagos objetivos estratégicos e aparentemente sem objetivos militares visíveis, claros e precisos. Com isto, Putin selou o seu destino e dificilmente resistirá muito tempo ao profundo declínio da economia russa que terá lugar nos próximos tempos, em função da severidade sem precedentes das sanções que todos os restantes países europeus, além dos Estados Unidos e do Canadá, lhe impuseram. Será provavelmente derrubado pelos seus próximos se quiser ir longe de mais nos seus propósitos guerreiros, ou pelo seu povo, se e quando tiverem lugar eleições livres e justas. No fim da linha poderá ter que enfrentar o Tribunal Internacional de Haia.

Na Ucrânia, a lei marcial foi proclamada, mas apesar das restrições aos transportes e à saída do país dos homens entre os 18 e os 60 anos, mais de meio milhão de ucranianos saíram do país e criaram a maior vaga de refugiados na região desde a brutal repressão da revolta húngara de 1956, esmagada no sangue pelos tanques soviéticos. A Europa tem o óbvio dever de assegurar a proteção e o apoio de toda a espécie aos refugiados e aos países que os acolhem e esse imperativo deveria, por sinal, estar à frente das iniciativas de fornecimento de armas muito sofisticadas à parte ucraniana.

Trata-se de um tabuleiro deslizante, em que fazer previsões, com base nas notícias contraditórias que se obtêm, se torna um exercício impossível, tal a volatilidade e imprevisibilidade da evolução da situação, entre combates, ameaças e esboços de negociação. Neste quadro, resta procurar captar o sentido profundo destes terríveis acontecimentos. E os aspetos estratégicos mais relevantes que efetivamente estão em causa são, do ponto de vista russo, a imposição de um estatuto de neutralidade à Ucrânia e a desmilitarização deste país (e acessoriamente a garantia de autonomia das regiões separatistas de Donetsk e Lugansk); do ponto de vista da ordem internacional, a necessidade de sancionar a conduta belicista de Putin; e no plano dos interesses da Europa, a absoluta necessidade de criar condições económicas e militares de uma verdadeira autonomia estratégica da União Europeia (agora que os Estados-membros conseguiram uma unanimidade histórica nas decisões adotadas) e de, em diálogo com os EUA, repensar a NATO.

A multiplicidade e violência das sanções que nos últimos dias foram impostas à Rússia são avassaladoras e nunca vistas. O país fica completamente isolado no plano económico, deixa de poder utilizar o espaço aéreo da Europa, as suas rotas marítimas ficam cortadas, os principais bancos perdem o acesso ao mecanismo Swift de transferências internacionais de fundos, a Rússia é excluída dos mercados de capitais internacionais, as relações de toda a ordem e espécie são suspensas, a Rússia é relegada ao estatuto de Estado pária. Uma medida particularmente penalizadora é o embargo total das exportações de semicondutores e de componentes de alta tecnologia, essenciais para as indústrias automóvel e de armamento da Rússia, sabendo-se que o atraso do país no domínio tecnológico é notório (e pesa, aliás, sobre a evolução do conflito militar na Ucrânia).

No entanto, existirá um efeito de boomerang óbvio das sanções ora aplicadas. As dificuldades energéticas, tal como no abastecimento de cereais e de um largo conjunto de matérias-primas (como o paládio e o níquel) vão criar graves problemas que se somam às já perturbadoras disfunções nas cadeias logísticas internacionais.

Isto significa mais inflação nos países ocidentais, corroendo o poder de compra, menos investimento, menos comércio internacional, dificuldades de abastecimento de produtos vitais, como os alimentares, e até possíveis racionamentos. Os sistemas bancários europeus também sofrerão algumas perdas e os mercados de bens e serviços serão profundamente afetados. No plano europeu, é inevitável que a forte recuperação da crise pandémica venha a ser gravemente perturbada, enquanto os Estados Unidos passarão quase incólumes por tudo isto.

Um dia, com o afastamento dado pelo tempo, será possível de forma desapaixonada e serena fazermos a verdadeira história deste terrível episódio de guerra na Europa e as verdadeiras motivações dos seus protagonistas, bem como o inventário das suas consequências duradouras. Por ora, assistimos a um delírio guerreiro dramático envolvido por fantasmas do passado que julgávamos enterrados.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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