Purificação
A Europa compactuou com as ditaduras russa, chinesa, árabes e africanas para além de todos os limites da decência democrática. O realismo político tem muitas vezes destas surpresas: vira-se contra nós.
Da guerra se diz que purifica. Tal como as tempestades e as grandes chuvas que, depois de passadas, deixam o ar puro, as terras lavadas e os espíritos serenos, também as guerras teriam esse efeito redentor de eliminar o acessório e destruir a poluição política, concentrando no essencial e obrigando as pessoas a tomar partido pelo que é importante, clarificando e esclarecendo. Não é verdade.
A guerra é odiosa, mata e envenena. Destrói e deixa feridas incuráveis. Vidas, famílias, casas, cidades e países: nada é poupado. Civis e soldados, novos e velhos ou culpados e inocentes: todos são atingidos. É verdade que há guerras justas e de libertação, bem diferentes das injustas e de opressão ou conquista. Mas, na sua maioria, são feitos macabros de violência e irracionalidade. Uma guerra põe entre parêntesis o que de melhor tem a humanidade: a moral, o direito, a bondade, o belo e o amor. Para já não falar da razão e da justiça.
Pode especular-se muito, mas não se sabe quanto tempo vai durar esta guerra, a quantos países poderá alastrar, quantas serão as suas vítimas mortais, quanto vai ser o sofrimento, nem quanta vai ser a destruição infligida às pessoas e às cidades. Mas sabe-se que tem na origem a desmedida ambição de um déspota e de uma elite política.
Esta guerra, iniciada, feita e conduzida pelas piores razões, não escapa a uma das suas regras: depois da destruição, nada ficará melhor, a não ser o poder bruto de alguns. Parece ser verdade que a Ucrânia mantinha em deliberado atraso social e económico as regiões ditas “separatistas”. É também verdade que a Rússia se sentia cercada e ameaçada pelo democrático, isto é, pelo crescente número de membros da aliança inimiga, a NATO de todos os pesadelos russos e soviéticos. São 14 (em 30) os antigos comunistas hoje membros da NATO. Mas nada disso justifica a guerra.
A Rússia recupera a sua posição no mundo: uma das grandes potências. Era a situação em que se encontrava a grande Rússia czarista e a Rússia soviética. Desde o fim do comunismo, da Guerra Fria e do muro de Berlim, a Rússia entrara num processo de decadência absoluta: o seu poder político a diminuir, o seu poder militar definitivamente ultrapassado pelo dos Estados Unidos e o seu poder económico superado pelo da China. A sua projecção no mundo esbateu-se e, ao contrário da China, o número de países seus clientes e satélites foi reduzido à mais ínfima espécie. A humanidade olhava para os Estados Unidos e para a China, por causa do poder. Para a Europa, pela cultura e as férias. Para a China, ainda, pelo trabalho industrial. Da Rússia, repetidamente humilhada, nada mais se esperava. Mas foram dez ou vinte anos minuciosamente aproveitados para refazer uma potência, para afirmar o poderio do gás e do petróleo e para intervir em conflitos periféricos.
O ditador Putin revelou uma enorme plasticidade sem escrúpulos, um empirismo sem remorsos nem dogmas ideológicos. Tentou a parceria com os Estados Unidos, o que Trump estava disposto a conceder, mas a derrota eleitoral deste último desfez os seus sonhos. Virou-se para Xi Jinping que aceitou o ridículo mas utilíssimo papel de “compère”. Nada de muito perigoso, mas o efeito foi devastador.
A China e a Rússia, condenadas desde sempre a desentender-se e a rivalizar, encontraram finalmente uma plataforma temporária, débil, aparente, mas que mete medo. Aquelas duas grandes nações, que, como impérios ou como ditaduras comunistas, sempre se desafiaram, encontraram forma de aterrar o mundo e dizer aos Estados Unidos que já não estavam sozinhos no comando. E sobretudo de dizer à Europa que esta já não contava.
Talvez convenha não esquecer umas breves lições que se podem retirar para já. A Europa paga muito caro a sua insignificância militar. A sua decisão, com várias décadas, de ficar dependente dos Estados Unidos e de privilegiar sempre a despesa social, em detrimento da defesa, tem enormes e negativas consequências.
A decisão europeia de se deixar amarrar a uma excessiva dependência energética da Rússia (e de outros…) retira liberdade e põe em perigo a autonomia europeia e dos respectivos países. A aceitação do domínio absoluto dos Estados Unidos na área da defesa ocidental teve consequências aflitivas, a começar pela subalternidade do nosso continente.
As múltiplas decisões europeias de se deixar arrastar para uma absoluta dependência industrial relativamente à China ajudaram à vulnerabilidade da Europa e das respectivas democracias.
A convicção europeia (e americana) de que a Rússia estava definitivamente de joelhos e de que era possível pôr em prática uma estratégia absoluta de cerco e de alargamento da NATO até às suas fronteiras revelou-se perigoso erro.
Quando substituem o diálogo e a cooperação, quando são pobres alternativas à força da negociação, as políticas de acatamento e conciliação são perigosíssimas. A Europa compactuou com as ditaduras russa, chinesa, árabes e africanas para além de todos os limites da decência democrática. O realismo político tem muitas vezes destas surpresas: vira-se contra nós. A excessiva voracidade do capitalismo e da democracia ocidental têm consequências: os cleptocratas não são apenas dependentes, são também ameaçadores.
A crença europeia e americana em que é ilimitada a capacidade de diálogo e cooperação com as ditaduras está a dar resultados nefastos: os ditadores pensam que é possível abusar e que a interdependência lhes é favorável. Até os financeiros do terrorismo internacional consideram a Europa um continente afável e complacente.
Sem democracia, repousando sobretudo na cleptocracia, o governo russo conseguiu fazer uma caminhada com apreciável êxito. Não para a democracia, com certeza, mas para a recuperação do lugar da Rússia no concerto das potências.
A Rússia de Putin ficará na história como um caso de êxito de planeamento estratégico furtivo. Durante décadas, dezenas de decisões inofensivas prepararam o regresso do país à primeira fila mundial. As infra-estruturas espaciais e os projectos multilaterais fazem parte desse plano. Tal como a espionagem e a intrusão digital. A exploração e a exportação de gás e petróleo, transformando o país no segundo maior produtor do mundo, imprescindível para um grande número de países europeus democráticos, foram as armas económicas que sustentaram uma política. O armamento foi outro trunfo: está a ver-se.
O autor é colunista do PÚBLICO