Quantas crianças para adopção ficaram esquecidas por causa da covid?

Mãe, tal como em qualquer outra tragédia, há o momento do pânico e fuga, e o de voltar ao local, procurar por entre os destroços, e voltar a reconstruir.

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"Nem consigo aceitar que tantas outras fossem condenadas a mais um ano ou dois de instituição, porque aparentemente os tribunais não consideraram os seus projectos de vida urgentes" @designer.sandraf

Ana,

Ouvi uma reportagem da TSF sobre como os processos de adopção sofreram com a pandemia e fiquei de cabelos em pé. Segundo o relatório CASA do Instituto de Segurança Social, 355 crianças ficaram à espera de uma decisão judicial e 179 que já tinham a adopção decretada, não foram entregues às famílias.

Espera, substitui os números por nomes e vais ver como o efeito é ainda mais brutal. Uma Ana, uma Madalena, um Eduardinho, uma Carminho, uma Marta, uma Constança, ah pois é, quando imaginamos que podiam ser os nossos filhos ou os nossos netos cresce o desespero.

Saímos às varandas para bater palmas aos que prestavam serviço na linha da frente, e bem, e depois paralisamos perante a urgência de uma decisão judicial, de reunir crianças com os seus novos pais? Houve, certamente, muitos técnicos desta área que foram também verdadeiros heróis, e muitos terão ficado de pés e mãos atados por um colete-de-forças de regras e directivas, mas não consigo deixar de sentir que ainda vamos ter de responder um dia, nalgum lugar, pelas tragédias que deixamos acontecer quando o pânico nos invade.

Felizmente uma investigação da ProChild CoLAb à forma como decorreu a adopção no início da pandemia (entre Março e Junho de 2020), feita em parceria com Isabel Pastor, directora da Unidade de Adopção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar, obriga-nos agora a abrir os olhos. Mas nota, Ana, que as famílias entrevistadas para este estudo são, apesar de tudo, as que já se encontrarem na recta final dos processos de adopção. Mesmo assim, segundo a investigadora Stephanie Alves, entrevistada pela jornalista Rita Carvalho Pereira, muitas das crianças passaram um mau bocado porque embora já tendo pais seleccionados não os podiam conhecer pessoalmente, e os pais candidatos ficaram angustiados e frustrados por não as poderem acolher de imediato. Põe-te agora na cabeça das crianças que já tinham começado a estabelecer uma relação com os futuros pais e, de repente, deixaram de receber as suas visitas, de poderem sair com eles — admiras-te que a relação tenha regredido, como referem os investigadores? Que tenham interpretado estas ausências como novos abandonos?

O estudo indica que se recorreu a “meios digitais — deve ser uma nova aplicação “adopção em Zoom” —, mas que nos primeiros contactos a máscara era obrigatória, ou seja, só viam os olhos uns dos outros! Quanto ao toque, suspeito que era igualmente proibido. Aparentemente com o evoluir da pandemia, e do bom senso, digo eu, os encontros passaram a ser sem máscara e ao ar livre, valha-nos isso.

A sério, Ana, nem mesmo regressando no tempo aquele tempo em que a covid matava muito e enchia os hospitais, consigo aceitar que não existissem alternativas, que os riscos do contágio não fossem bem menores do que os riscos para a saúde mental, presente e futura, destas crianças. Nem consigo aceitar que tantas outras fossem condenadas a mais um ano ou dois de instituição, porque aparentemente os tribunais não consideraram os seus projectos de vida urgentes. É que, para mim, a linha da frente passa mesmo por aqui.


Querida Mãe,

Até fiquei sem ar ao ler a sua carta, infelizmente acho que vai ser a primeira de muitas a pôr o foco em milhares e milhares de pessoas – e de causas – que foram absolutamente esquecidos sobre o pretexto da covid. Em Abril de 2020, na nossa Birra “Maus-tratos não fazem quarentena”, a mãe dizia em relação à suspensão de visita de técnicos a crianças sinalizadas: “A lei do Estado de Emergência é clara quando diz que o acompanhamento e o cuidado com os mais vulneráveis, incluindo as crianças é absolutamente prioritário. Os profissionais desta área podem e devem continuar o seu trabalho, e não têm outro limite para lá das regras do distanciamento social.”

Em Fevereiro de 2022, concordo de novo consigo: não conhecemos o que se passou a fundo, e evidentemente que não queremos apontar o dedo a profissionais que certamente estiveram triplamente mais frustrados que nós, procurando dar a volta a um sistema que bloqueava as melhores das intenções, mas não podemos deixar de falar destes casos. Pela sanidade física e mental de todos os portugueses – e principalmente dos mais vulneráveis –, é preciso tirar tempo de antena aos números da covid, às subidas e descidas dos gráficos, ao diz que disse o político A e o virologista B sobre a nova vaga, e começar a entender e procurar solucionar os problemas que nós criámos. Temos de pedir justificações, garantir que não houve abusos, e se existiram, procurar a melhor forma de lidar com as situações criadas.

Mãe, tal como em qualquer outra tragédia, há o momento do pânico e fuga, e o de voltar ao local, procurar por entre os destroços, e voltar a reconstruir. O tempo está a contar para todas as pessoas que viram os seus direitos congelados, e cabe-nos a nós, que apesar de tudo fomos menos afectados, usar a nossa voz para os defender.


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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