Rita Matias, a mulher antifeminista do Chega
Ciclicamente surgem correntes políticas conservadoras que procuram restaurar a ordem social e os papéis tradicionais de género como seu sustentáculo. Nestas alturas, o feminismo torna-se impopular e é associado a sublevações na vida familiar e a conflitos entre os sexos.
A única mulher eleita para a Assembleia da República pelo Chega nas eleições legislativas de 30 de janeiro, entre 12 candidatos, apresenta-se como mulher e antifeminista.
Questionada recentemente na CNN Portugal sobre os motivos por que se qualifica como tal, Rita Matias veio explicar, em síntese, a sua visão do que considera ser o feminismo: uma luta que coloca em oposição homens e mulheres e, mais do que isso, coloca as mulheres contra os homens.
De seguida mapeia um conjunto de problemas que afetam as mulheres e que merecerão a atenção do Chega. Fala-se do combate à violência doméstica, à excisão genital, à violência obstétrica e às desigualdades salariais e da proteção do emprego durante a gravidez. Todas questões que tranquilamente integram qualquer agenda feminista.
Rita Matias deveria ter consciência de que, após século e meio de história dos movimentos feministas, uma declaração de antifeminismo não é uma matéria de opinião, mas antes de assumir uma posição política e ideológica.
A jovem futura deputada poderá simplesmente precisar de ler mais. Deverá ou deveria saber que é herdeira de lutas feministas – e das mais longas e difíceis – pelo simples facto de poder exercer o direito de voto, conquistar um lugar de representação política e intervir no espaço público. Em 1911, a médica Carolina Beatriz Ângelo foi a primeira mulher a votar em Portugal, e enfrentando grande resistência. Tanta que, dois anos depois, o voto feminino foi proibido por lei.
Porém, na minha leitura, Rita Matias, para sustentar os seus pontos de vista, toma liberdades retóricas com conceitos que desconecta propositadamente da sua realidade histórica. E por isso me parece importante refletir sobre este episódio, precisamente pelas características do partido pelo qual foi eleita.
Ciclicamente surgem correntes políticas conservadoras que procuram restaurar a ordem social e os papéis tradicionais de género como seu sustentáculo. Nestas alturas, o feminismo torna-se impopular e é associado a sublevações na vida familiar e a conflitos entre os sexos. Na contemporaneidade, os partidos populistas de direita, como o Chega, corporizam este movimento de retrocesso e, no que diz respeito ao género e à sexualidade, as suas propostas pautam-se por reafirmar o valor da família nuclear heteronormativa, rejeitar a educação sexual e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, promover o regresso da mulher ao lar e às suas funções “tradicionais”.
No seu mais recente programa eleitoral, o Chega assume a família – que propõe erigir em Ministério – como pilar da sociedade, reclamando que esta instituição “retome o lugar que é o seu”. Defende primordialmente a “família natural, a ‘baseada na relação íntima entre uma mulher e um homem’”.
Na referida entrevista à CNN Portugal, questionada pelos jornalistas, mas também pela comentadora Joana Amaral Dias, Rita Matias aponta para uma espécie de vitimização da família heteronormativa, empurrada, não se percebe bem por que forças, para um estatuto démodé. Não conheço ataques à opção de constituir uma família “convencional”, mas são muito visíveis as tentações hegemónicas de certas correntes conservadoras de negar o direito à existência de outros modelos familiares.
Durante a campanha eleitoral, Rita Matias proferiu enfáticos discursos a convidar a seguir o líder André Ventura. O mesmo líder que, enquanto candidato presidencial nas eleições de há um ano, atacou a autonomia das mulheres, como patente no célebre episódio conhecido como “Vermelho em Belém”.
No programa televisivo, Joana Amaral Dias interpelou bem a sua interlocutora em pelo menos dois pontos. O primeiro, perguntando-lhe se tem vergonha do que defende, afinal, o seu partido. O segundo, notando que, como terceira força política no Parlamento e uma bancada de 12 deputados, o Chega está agora a preocupar-se com a aquisição de um perfil mais institucional.
A declaração de antifeminismo de Rita Matias fez-me pensar num outro, na génese do Estado Novo, em 1934, quando Oliveira Salazar declarou, em entrevista a O Século, que “algumas senhoras” integrariam a lista de deputados à Assembleia Nacional. Depois clarificou que tal “não significa ter-se o Estado ou elas próprias convertido, agora, ao feminismo”. Nas palavras de António Ferro, Oliveira Salazar era “elegantemente antifeminista como Mussolini, como quase todos os ditadores”.
Se se apresenta como antifeminista, Rita Matias deve assumi-lo – reitero, política e ideologicamente – em toda a linha, com transparência, sem malabarismos argumentativos. Quando se tenta aprofundar ideias, propostas e posicionamentos, desemboca-se em incoerências, contradições, fumo e truques de ilusionismo.