Nova casa, com apoio público: começou mais uma vida da Poetria

Despejo expulsou a “livraria gourmet” do Porto das Galerias Lumière, mas autarquia cedeu-lhe um espaço. A “nova” Poetria vai ter mais edições próprias, um guia literário pela cidade e um projecto com escolas

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A Câmara do Porto cedeu um espaço à Poetria José Sérgio

Dina Ferreira perdeu o sono. Mas, desta vez, pelos melhores motivos. A criadora da Poetria, única livraria do país dedicada à poesia e ao teatro e desde 2017 nas mãos de Francisco Reis e Nuno Pereira, ainda não acredita no “final feliz” da história: depois de um processo de despejo, a Poetria salvou-se e abriu uma nova casa. Maior, a poucos metros da morada inicial e com apoio público. “Nem tenho dormido”, desabafa, feliz, enquanto cumprimenta o presidente da Câmara do Porto que, por um valor simbólico, se tornou “senhorio” da livraria.

A nova casa, no número 115 da Rua de Sá Noronha (bem pertinho das Galerias Lumière, onde a livraria estava), é um upgrade, comenta com Nuno Pereira o autarca, que esta sexta-feira visitou o espaço aberto há dois dias: “Está muito bonito. Vocês merecem, temos de apoiar estas iniciativas.” A inauguração oficial está marcada para Maio, o mês do 19.º aniversário da Poetria, mas os seis a oito mil livros da “livraria gourmet” do Porto, como um dia Valter Hugo Mãe lhe chamou, já passaram para a nova morada.

“Cabiam todos na outra loja”, jura Francisco Reis com um sorriso, consciente da aparente impossibilidade física da façanha. A antiga Poetria era muito pequena. A nova, de pé-direito impressionante, tem uma área generosa, distribuída por dois pisos. E abre caminho a mais livros e novas possibilidades. Há um sofá a convidar a leituras sem relógio, espaço para eventos e tertúlias dentro de portas, mais estantes para preencher: com poesia, teatro, cinema, ficção (uma selecção cuidada e restrita), livros infantis, edições em inglês. E muitas ideias já a borbulhar.

A Fresca, chancela editorial da Poetria dedicada a autores nascidos depois de 1980, a maioria deles portuenses, tem preparados mais quatro livros para editar. Está a ser ultimada a co-edição de seis peças de teatro. Aos sábados de manhã passará a haver um roteiro literário pela cidade. E, ainda em fase embrionária mas com esboços nítidos, está um projecto de ligação às escolas daquela geografia. “Vamos pedir aos miúdos para escreverem poesia e desenhar e vamos publicá-los”, conta o livreiro. “Os miúdos sabem escrever. Nascemos artistas, só que depois vamos perdendo isso.”

Este “incentivo à leitura e à escrita” é, para a Poetria, parte da sua missão. E Francisco e Nuno alegram-se por, nos últimos anos, ver entrar na livraria cada vez mais jovens. Frutos, acreditam, da chancela Fresca, ela própria pensada para dar voz a outra geração. “Queremos promover uma leitura por gosto, não impositiva.”

O que eles andaram para aqui chegar…

O “final feliz” nem sempre foi um vislumbre. Em Outubro de 2019, o fim anunciado das Galerias Lumière – construídas nos anos 70 pelo arquitecto Magalhães Carneiro e que tinha planos para se transformar num hotel – abria um mar de angústia para os comerciantes. A Poetria, naquela morada desde 2003, era uma das afectadas. O braço-de-ferro não parou mais. Enquanto outros comerciantes aceitavam sair, a livraria resistia. Mas em Março de 2021, uma notificação para abandonarem o espaço até ao final do mês acentuava a aflição. Francisco e Nuno disseram não: em tempos de pandemia e sem ajuda, não poderiam sair.

O anúncio da salvação veio na Feira do Livro do Porto. Rui Moreira, a quem pediram uma reunião, tinha-os tranquilizado: a autarquia estava disposta a ajudar. Mas nos jardins do Palácio de Cristal, com Marcelo Rebelo de Sousa como testemunha, a garantia tornou-se pública: a câmara cederia um espaço à Poetria.

A proposta do independente foi aprovada em reunião do executivo, por unanimidade, em Setembro. “É uma livraria única na cidade do Porto, com uma enorme ligação cultural, com uma história”, considerou esta sexta-feira Rui Moreira destacando os três pontos em que a Poetria toca: “Estamos a falar do comércio tradicional, da alma e da cultura da cidade.”

O autarca foi mais longe. Destacando que uma autarquia “não pode ter a visão economicista que é razoável que os privados tenham” (a Poetria vai pagar uma renda simbólica de 50 euros mensais), Rui Moreira assumiu estar disponível para outras parcerias do género. Em circunstâncias destas, disse, a Câmara do Porto quer “valer àquilo que são lojas de tradição, com impacto social e cultural”. E a Casa Chinesa – que deverá receber selo do Porto de Tradição já na próxima reunião de câmara – é um desses casos, repetiu, depois de o ter afirmado na última reunião do executivo. Se a mercearia fina não resistir ao despejo de que está a ser alvo, a autarquia irá ceder-lhes uma das lojas exteriores do Bolhão.

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