Carta aberta ao próximo primeiro-ministro
Conviria que o próximo inquilino de São Bento (e a coligação de partidos que previsivelmente o apoiará) tivesse consciência de que só é possível enfrentar o tipo de problemas com que Portugal se debate se mudarmos a maneira de fazer política.
Em Portugal, como noutros países, a morte das grandes narrativas e a pulverização do espaço mediático levaram a discussão política a entrincheirar-se no curto prazo e na gincana partidária. Políticos e comentadores entretêm-se em exercícios de aritmética eleitoral e em tacticismos cínicos. Nunca se produziram tantos “planos estratégicos”, nem se falou tanto dos “desafios estruturais” que o país enfrenta, mas o debate público é feito cada vez mais da espuma dos dias.
Em vésperas de um novo ciclo eleitoral, é importante recordar três grandes problemas que, mais do que entraves ao “desenvolvimento”, são a raiz de muitas dificuldades sentidas por boa parte dos portugueses no dia-a-dia. Num momento de grandes transformações societais à escala planetária, é fundamental que Portugal enfrente de vez estes problemas que impedem a coesão social, travam o desenvolvimento económico, fragilizam a democracia e infernizam a vida de muitas pessoas que, nascendo e morrendo em Portugal, nunca chegam a saborear as delícias do “jardim à beira mar plantado” tão ameno para os estrangeiros.
O primeiro problema é o da desigualdade de rendimentos. Um país onde uma boa parte da população trabalha a tempo inteiro para receber um salário que não lhe permite satisfazer necessidades básicas é um país bloqueado, tanto do ponto de vista social e moral como económico. É fundamental pôr em marcha um conjunto amplo de políticas, muito para além da subida do salário mínimo, que permitam a quem trabalha chegar ao fim do mês com contas pagas e paz de espírito. Esta é uma questão de justiça social, que nos obriga a repensar a sociedade desigual que continuamos a alimentar. Os países europeus com maiores índices de desenvolvimento são aqueles que fizeram um maior esforço de coesão e criaram sociedades sem “doutores” nem “engenheiros”, onde os privilégios injustificados são mal vistos, não sinais de distinção social, como acontece entre nós.
O segundo problema é demográfico. Um país envelhecido, com baixíssima natalidade e um saldo migratório que só compensa marginalmente a perda natural de população, tem pouco futuro e inviabiliza o estado social. Os diagnósticos estão todos feitos neste domínio, mas as políticas concretas tardam em chegar e, mais uma vez, a própria sociedade parece ter medo de se repensar. A organização do trabalho (longas jornadas, rigidez de horários, precariedade, intolerância das chefias) continua a dificultar a conciliação com a vida familiar; e a precedência que os jovens se vêm obrigados a dar aos estudos e à carreira sobre os filhos levam-nos a adiar a constituição de família, quando não abandonam de todo a ideia por falta de meios. A imigração é, inevitavelmente, uma das soluções para o problema demográfico português. Mas também neste domínio faltam políticas e planos de atracção de mão-de-obra (mais e menos qualificada) e uma maior abertura da população à entrada de gente vinda de outras geografias e culturas. A integração destas pessoas levantará sempre dificuldades mas o saldo final será largamente positivo para um país que continua a ter hoje — e apesar da história — pouco mundo.
O terceiro problema é o da excessiva centralização, que começa no Estado mas tem vindo a agravar-se nos domínios da economia, da cultura e ciência, dos média, etc. É muito longa a história da centralização em Portugal e são claras as razões que a explicam. Mas aquilo que em determinados momentos terá estimulado reformas e avanços transformou-se hoje num factor de bloqueio do desenvolvimento e da coesão territorial. O controlo férreo de ministérios como os da educação e da saúde sobre escolas e hospitais não aproveita nem à qualidade dos serviços prestados nem à própria autoridade do estado. E o mesmo acontece em muitas outras áreas da administração pública. Pode discutir-se se a delegação de competências deve ser feita directamente nas autarquias, em comunidades intermunicipais, nas comissões de coordenação ou noutras instâncias regionais, mas é hoje clara a necessidade de delegar — com responsabilização — uma parte importante dos serviços públicos na administração periférica. Idêntico desafio coloca-se à iniciativa privada: é fundamental que as empresas e os agentes culturais, mediáticos, etc. contrariem a tentação fácil da proximidade aos centros económicos e de poder (Lisboa e uma meia dúzia de cidades litorais) e apostem em territórios mais marginais, capitalizando potencialidades subaproveitadas.
Nenhum destes problemas é novo ou está pouco estudado: os especialistas têm chamado repetidamente a atenção para eles e proposto soluções. Mas nem o Estado nem a própria sociedade parecem muito dispostos a “inscrevê-los” (essa terrível dificuldade portuguesa, como mostrou José Gil (Portugal, Hoje: o Medo de Existir. Lisboa: Relógio d'Água, 2004) e a agir decididamente sobre eles. Os factores de bloqueio, tanto da acção política como da iniciativa cidadã, são muitos e difíceis de superar. Por um lado, a política partidária e os interesses sectoriais continuam a consumir muito do esforço das nossas instituições; por outro, “a organização não é fácil para os portugueses, individualistas empedernidos que por natureza não podem viver confinados, em comunidade”, como notou Ryszard Kapuściński (Mais um dia de vida. Angola 1975. Porto: Campo das Letras, 2007. 2ª ed.
Mudar este estado de coisas não é coisa para um governo nem se faz numa legislatura. Mas conviria que o próximo inquilino de São Bento (e a coligação de partidos que previsivelmente o apoiará) tivesse consciência de que só é possível enfrentar este tipo de problemas se mudarmos a maneira de fazer política em Portugal. É necessário pôr de lado a instrumentalização demagógica da opinião pública e trabalhar na construção de um outro modelo de intervenção cívica. Um modelo em que as pessoas são chamadas não só a votar neste ou naquele partido, mas a tomar como seus os problemas que nos afectam a todos, a reflectir sobre eles e a contribuir, agindo no seu dia-a-dia, para os resolver. A função de um político democrático é também, e sempre, alargar os limites da compreensão e do exercício da política, bem para lá das querelas partidárias e das matemáticas parlamentares.