Quando um mundo de canções nos bateu à porta pelo Natal

Vem aí uma revista comemorativa dos 50 anos do Mundo da Canção, um mundo de tantos de nós.

Saiu pela primeira vez em Dezembro e tinha um padre na capa. Mas não era religiosa nem de Natal. Era uma revista dedicada à música, ou melhor, ao mundo da canção, que aliás era o seu nome. Não foi a primeira, nem a voz daquele padre estava isolada nos meios da igreja para nos falar (cantando) da condição humana, da pobreza, da fome ou da guerra, pois também o iam fazendo, ainda que brandamente, as freiras Maria do Céu ou Maria Humberta, as religiosas do Conjunto Shalôm ou até o Grupo Vocal Adventista Maranata, como bem registou João Carlos Callixto no seu livro Canta, Amigo Canta (Âncora Editora, 2014). O certo é que o Mundo da Canção, revista nascida há 52 anos no Porto, fez história devido ao empenho e à paixão pela música de um homem de artes gráficas que se lhe entregou de alma e coração até hoje, Avelino Tavares (o primeiro número foi todo escrito, paginado e impresso por ele).

Houve outras? Houve. No Natal anterior, o de 1968, chegou às bancas a Cinedisco - Revista do Mundo Moderno. Quinzenal, resistiu até ao Natal de 1970 com “50 números redondos”, como foi recordada em 2018 no blogue Porta da Loja, por altura dos seus 50 anos. E não tardariam a chegar mais títulos: A Memória do Elefante, Disco, Música & Moda, Musicalíssimo, o Se7e. Mas ao sair naquele Dezembro, na viragem para a década de 70, após a morte de Salazar e em pleno “reinado” de Marcello Caetano, o Mundo da Canção virava costas ao “entretenimento” puro e simples para dar à música a força da palavra, o poder do gesto, a liberdade da crítica.

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As capas do primeiro (1969) e do último (1985) número da revista Mundo da Canção

O padre da capa, Fanhais de seu nome (afastado compulsivamente do sacerdócio, acabou por ser forçado ao exílio, tornando-se voz activa no canto de protesto; é hoje presidente da Associação José Afonso), não estava sozinho naquela estreia. Na barra vermelha onde figurava o seu nome estavam também José Afonso, Fluído, Duarte & Ciríaco, Álamos, Adamo, Gilberto Gil, The Beatles, Joan Manuel Serrat, Los Payos, Barry Ryan, Charles Aznavour, Raul Solnado, Elvis Presley, Jean Ferrat, Bee Gees, Joe Dassin, Patxi Andión, Michel Polnareff, Richard Anthony, Chico Buarque, Luís Cília, Joaquín Diaz, Rolling Stones, Manuel Freire, Johnny Halliday. Quase todos devido a transcrições de letras, mas também a apontamentos e pequenas notas que rapidamente deram lugar a análises, entrevistas, críticas, com a revista a acompanhar a história da música que por cá ou lá fora se ia fazendo, do nascimento local dos festivais de música para grandes audiências (Vilar de Mouros, Jazz de Cascais) à viragem que começava a “contaminar” a celebração da música ligeira nacional (o Festival RTP da Canção).

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Capas dos discos de Fanhais, das freiras Maria do Céu e Maria Humberta e do Conjunto Shalôm. A foto de Fanhais a preto e branco (da autoria de Augusto Cabrita) serviu de base à capa do primeiro MC

Esse primeiro número também anunciava os novos álbuns de José Afonso (Contos Velhos, Rumos Novos), apresentado como “indiciador de um movimento de renovação, movimento que está a devolver a nossa música à realidade popular”; e de Carlos do Carmo, num regresso “pela mão do maestro Jorge Costa Pinto” e com esta nota: “Na realidade, vale a pena ouvi-lo”. As capas seguintes trariam, até ao 25 de Abril e além dos já citados, mais rostos: Joan Baez, Paulo de Carvalho, Joni Mitchell, José Feliciano, Donovan, Fernando Tordo, Jethro Tull, Melanie, Emerson, Lake & Palmer, Elton John, Leonard Cohen, José Mário Branco, Janis Joplin, Adriano Correia de Oliveira, Black Sabbath, Chick Corea, The Who, Procol Harum, Van Der Graaf Generator, Byrds, King Crimson. Pelo meio, um número “encalhou” nos armazéns da PIDE, por diligente intervenção da censura, só daí saindo após o 25 de Abril de 1974. Era o número 34, que ostentava cinco discos: Margem de Certa Maneira (José Mário Branco), Eu Vou Ser Como a Toupeira (José Afonso), Até ao Pescoço (José Jorge Letria), Palavras Ditas (Mário Viegas) e Fala do Homem Nascido (António Gedeão musicado por José Niza). Só de ler os nomes, os censores devem ter pensado que vinha aí a revolução. Não se enganaram.

Pois o Mundo da Canção não morreu. Publicou 67 números até Junho de 1985, lançou livros e discos, revistas especiais, promoveu concertos e festivais (Intercéltico, Jazz Europeu), fez rádio, agenciou artistas e celebrou 45 anos com um volume intitulado Historial 1969-2015. Mantém activo um site próprio, entregue que está o seu acervo histórico ao Ephemera, Biblioteca e Arquivo de José Pacheco Pereira. O editorial do primeiro número terminava com votos de Festas Felizes – porque nos chegava às mãos “quando o Natal se aproxima”. São votos que podemos renovar, com prenda garantida no “sapatinho” (mas ainda no prelo): vem aí uma revista comemorativa dos 50 anos do Mundo da Canção, um mundo de tantos de nós.

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