Douro. Entre o “excesso de identidade” e os desafios de uma paisagem em evolução

Descobrir onde fica o limite entre o que urge preservar e o que pode ser mudado é um jogo de difíceis equilíbrios entre actores públicos regionais e nacionais e os agentes locais.

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Douro. “Aqui, no princípio era o homem. O homem duriense”, escrevia Miguel Torga, numa entrada dos seus Diários de 19 de Agosto de 1979. Se quisermos o resumo espremido da exposição de motivos da candidatura do Alto Douro Vinhateiro a Património Mundial acolhida pela UNESCO há 20 anos, ele estava já ali, naquelas curtas frases do escritor-património da região, nascido em São Martinho de Anta. Isto, sem desprimor para Fernando Bianchi de Aguiar e toda a equipa que, coordenada por este académico da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, documentaram num texto bem mais extenso as inúmeras razões para a inscrição deste monumento nacional na lista daquela organização das Nações Unidas.

A arquitecta paisagista Teresa Andresen fazia parte desse dream-team de 36 sábios de diversas áreas que, como os velhos pedreiros do Douro, assentou e alinhou, a pedido da Fundação D. Afonso Henriques, os argumentos que suportavam a candidatura. E quando lhe pedimos, 20 anos depois, para escolher uma, uma característica singular desta paisagem, a resposta imediata é: “a armação do terreno”. A forma como os homens e mulheres do Douro – com a ajuda de inúmeros galegos e outra gente humilde, reza a história – criaram solo onde não havia solo, preservando ao mesmo tempo a água que, de outra forma, fugiria encosta abaixo é, descreve, o mais importante atributo da região. E um dos que correm riscos, avisa, tendo em conta a falta de mão-de-obra para o manter e as necessidades de mecanização, que convivem mal com a antiga topografia dos terrenos.

O Douro é “uma paisagem cultural evolutiva viva”, lembrava Bianchi de Aguiar nesse texto de arranque para uma aventura que já leva 20 anos. Mas descobrir onde fica o limite entre o que urge preservar e o que pode ser mudado é um jogo de difíceis equilíbrios entre actores públicos regionais e nacionais e os agentes locais: habitantes, autarcas, agricultores, produtores de vinho, pequenos uns, globais, outros, e os cada vez mais presentes actores do turismo que ora se contentam com a reinvenção dos usos das antigas quintas, ora sonham com suites, às vezes em leito de cheia, mas com vista para um rio que se tornou, a este nível, uma mina d’ouro.

No Douro produz-se vinho, azeite, amêndoa, o que a terra dá. Ninguém plantou muros e videiras para “produzir” paisagem, mas, de repente, o esforço de milhares de mãos anónimas criou, de facto, um produto novo, tornado hoje bem cultural e turístico: 250 mil hectares vertebrados pelo rio e seus afluentes que correm “esganados” entre montes, descrevia Raul Brandão; delimitados pela demarcação pombalina, apresentados ao mundo pelo mapa do Barão de Forrester e, de mais fácil absorção ainda, pelos milhões de pixéis que, a partir dos cruzeiros, ou dos seus miradouros, se espalham pelas redes sociais, como recorda o geógrafo Álvaro Domingues, em “De que é que fala quando se fala em paisagem”.

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A paisagem, avisava, “é um dispositivo de inteligibilidade do real de uma extrema voracidade – é omnívoro. Alimenta-se praticamente de tudo”. E o Douro, escrevia nesse texto para um colóquio sobre paisagens do vinho, “é uma terra com excesso de identidade que, através de múltiplas narrativas, históricas e ficcionais, textuais e visuais, “se confunde cada vez mais com as representações de si próprio”. O risco, alertava, é que “a estetização demasiada da paisagem só aumenta tensões e ansiedades, insistindo na construção de identidades julgadas perpétuas, mas que, afinal, nem saíram dos tempos bíblicos, nem de tempos serenos e metabolismos lentos que hoje não existem. As paisagens não são mortórios parados, e as identidades são construções em progresso”.

O Douro nunca parou de mudar, como atestam os 300 milhões de euros de apoios públicos investidos na reconversão da vinha, só na última década. Antes da entrada na lista da UNESCO, recorda Teresa Andresen, o Projecto de Desenvolvimento Rural Integrado de Trás-os-Montes já tinha aberto a porta a alterações significativas na paisagem por parte de proprietários a braços com escassez de mão-de-obra e interessados nas possibilidades de incremento da produtividade e rendimento propiciados pela mecanização. Esses factores implicavam um alargamento dos patamares, por exemplo, e rapidamente entraram em colisão com as regras do Plano Intermunicipal de Ordenamento do Território que Portugal aprovou em 2003, como se comprometera com a UNESCO.

Condicionalismos

O património do Alto Douro Vinhateiro (ADV) é monitorizado e gerido de forma coordenada entre várias entidades – Cultura, Ambiente, Agricultura, Ordenamento –, a partir de Vila Real, por uma equipa da Comissão de Coordenação da Região Norte, CCDRN, liderada desde 2004 por Helena Teles. “Quando começámos, as pessoas diziam: ‘Agora é que não se faz mais nada no Douro.’ Hoje, fala-se menos em restrições e mais em condicionalismos”, garante esta engenheira civil.

Apenas um décimo da região demarcada faz parte do ADV, e está por isso protegido por legislação mais restritiva, mas, num território de propriedade pulverizada, as solicitações são mais que muitas. Apesar das possibilidades abertas pela informatização dos serviços, e pela tecnologia – que está a permitir, por exemplo a georreferenciação dos muros pré-existentes –, a equipa da CCDRN tem poucos olhos para os 25 mil hectares que tem sob sua alçada, e para acompanhar também o que se faz na zona especial de protecção envolvente. “Precisávamos de ter mais gente”, admite Helena Teles.

No extremo nascente da ADV, em Vila Nova de Foz Côa, Frederico Lobão e Paulo Grandão fazem da paisagem, e da história de superação dos habitantes da região, “um pilar primordial” da gestão quotidiana e da promoção das Gerações de Xisto, um projecto de quase uma década que se profissionalizou, juntando as explorações agrícolas das famílias de ambos, em 2017, e do qual resultou um azeite biológico de grande qualidade e alguns vinhos já premiados. Mas para Frederico, sendo uma mais-valia, o património impõe condicionalismos difíceis de encaixar com as necessidades de um território com tão pouca gente e no qual a agricultura, extensiva, tem níveis de produtividade muito mais baixos do que noutras zonas do país.

“Os técnicos da CCDRN poderiam vir mais vezes cá, conhecer e falar com as pessoas. Tem de haver regras, mas tem de haver também sensibilidade”, pede este agricultor e produtor que, no caso, tem de lidar com as restrições que advêm da classificação da Arte Rupestre do Côa, que é também Património Mundial.

Preservação da paisagem e das suas gentes

Se retirar algo a esta terra é tão trabalhoso, quanto deveria valer uma garrafa de azeite ou um vinho minimamente decente produzido num lugar com tal história e com tais desafios geomorfológicos, climáticos, demográficos? Frederico Lobão e o responsável pela viticultura da Real Companhia Velha e presidente da Associação Prodouro, Rui Soares, não têm dúvidas: muito mais do que o que vemos nos supermercados. O mesmo deveria acontecer com a matéria-prima, tendo em conta que muitos dos habitantes do Douro não vivem do vinho, mas da uva, não fazem azeite, e apenas vendem a azeitona. Aumentar o valor dos produtos Douro, e distribuí-lo melhor é essencial para fixar gente ao território, e evitar a excessiva concentração da propriedade em meia dúzia de grandes empresas, alerta este engenheiro agrícola natural de Lamego, onde produz também vinho, nas terras da família.

Numa paisagem institucional de onde desapareceu a histórica Casa do Douro, a Prodouro arrancou em 2015, pela mão da Real Companhia Velha e do grupo The Fladgate Partnership, e conta, como associados, com 96 empresas que gerem cinco mil hectares. O objectivo é “ter voz, opinião, apresentar ideias”, diz Rui Soares, para quem as mudanças ocorridas nas últimas décadas exigem reflexão profunda e uma instituição com voz perante os poderes. O número de viticultores da região demarcada “desceu de 30 mil para 19 mil. A dimensão média da propriedade duplicou, passando para dois hectares”, recorda, mas, para muitas famílias, o torrão que lhes tocou de herança, naquelas encostas “ainda é visto como um fardo”.

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O criador do vinho Esmero volta ao papel do homem nesta paisagem. “Nós sabemos quando alguém está doente, ou com problemas financeiros. Isso nota-se na paisagem, no descuido das vinhas. Quando estamos bem, elas são bem trabalhadas, são autênticos jardins, geridos não apenas para ter rendimento, mas com gosto”, descreve. A este esmero de quem vive da terra, as entidades públicas, assinala, respondem melhor do que nos primeiros anos de Património Mundial. “No início foi um choque. Antes havia muito campo de manobra para intervir, e as pessoas estavam muito pouco condicionadas, e, de repente, viram-se perante regras às vezes inflexíveis”, recorda.

A aproximação entre as partes, explica, ajudou a que os agricultores começassem a perceber o porquê das regras e se tenham tornado “sensíveis” à importância da preservação do património. “Estamos num momento de maturidade”, considera Rui Soares. No entanto, ao nível das autarquias, as delimitações impostas pela gestão colidem, não raras vezes, com projectos locais ou com outros que, vindos de fora, prometem postos de trabalho, em troca de um naco daquela paisagem. Mesão Frio bateu-se pelo Douro Marina Hotel, que acabou chumbado. Mais recentemente, está em análise outro empreendimento turístico de grandes dimensões à beira-rio, em Bagaúste, Peso da Régua.

Apesar de ter chegado apenas há quatro anos à liderança do município de São João da Pesqueira, Manuel Carneiro já percebeu que a conciliação de interesses nem sempre é fácil. “Tem de haver um bocadinho de bom senso na avaliação dos projectos”, insiste, considerando que nalguns casos o parecer parece depender do gosto do arquitecto que avalia, mais do que apenas das regras em vigor. “Julgo que nenhum autarca quer que se construam ‘mamarrachos’, mas cada caso é um caso”, argumenta, pedindo que, em vez de se olhar para algumas intenções de investimento como “um ataque ao património, logo à partida, se tente perceber se, nalgumas situações, os projectos não vêm acrescentar valor ao que existe”.

Ao mesmo tempo que se ocupa da gestão destas “tensões e ansiedades”, a equipa liderada por Helena Teles tem ainda a cargo o plano de monitorização do ADV, com o qual se vigia a evolução periódica dos parâmetros que levaram à inscrição na lista de Património Mundial. No início, a UNESCO ainda se contentou com a identificação de quatro áreas de amostragem, mas depois de um estudo de avaliação, coordenado por Teresa Andresen, em 2013, na sequência da polémica em torno do projecto da barragem de Foz Tua, entendeu-se alargar para dez o número de espaços alvo de acompanhamento mais profundo, totalizando 500 hectares, 20% da área protegida.

Foz Tua foi um desafio ao estatuto do ADV, mas, assinala Helena Teles, a zona acabou por ser abrangida por um masterplan que a EDP se obrigou a concretizar e que melhorou alguns aspectos da paisagem na envolvente ao empreendimento hidro-eléctrico, onde se procedeu “à construção de socalcos, muros de pedra posta de xisto, plantação de pomares, olival e amendoal, requalificação de caminhos, entre outras intervenções”. No último relatório entregue à UNESCO, em Novembro, a equipa da Missão Douro faz o balanço das alterações produzidas no terreno desde 2014, para concluir que, nas dez paisagens de referência, estas “foram muito reduzidas e resultaram de pequenas transformações à ocupação do uso do solo e ao sistema de armação da vinha, consideradas consentâneas com os valores de autenticidade e integridade do ADV”.

Manuel Carneiro, filho e neto de viticultores que retiraram da vinha o dinheiro com que os filhos conseguiram ir para fora da região estudar, não tem dúvidas de que o balanço da classificação é claramente positivo. “A marca Douro ganhou reconhecimento internacional, isso atrai turismo e tem impacto no próprio sector do vinho”, concede, assinalando, como Rui Soares ou Frederico Grandão, que subsiste o problema da distribuição, desequilibrada, da riqueza que o Douro produz. A isto o autarca acrescenta a estranha sensação de viver numa região com um potencial tremendo que o Estado, tirando a gestão e monitorização do ADV, abandonou. É certo, reconhece, que a falta de emprego explica muito do despovoamento, mas sem serviços públicos, como unidades de saúde ou tribunais, o Douro Património Mundial vai continuar a perder gente, insiste. E se “no princípio era o homem”, o que será destes montes se ele continuar a ir-se embora?

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