Foz Côa: no Douro Superior, dois Patrimónios da Humanidade (e um vinho mítico)
Foram as gravuras que puseram Vila Nova de Foz Côa no mapa e é fácil esquecer que também faz parte do Alto Douro Vinhateiro. Uma encruzilhada de duas classificações da UNESCO, onde o turismo tarda a impor-se
Não são muitos os locais que se podem gabar de ser duplamente Património Mundial da Humanidade. No Douro Superior, longe do bulício turístico da Régua e do Pinhão, Vila Nova de Foz Côa vive, discreta, esta sua singularidade. Entre dois rios que lhe ditaram a geografia e as distinções da UNESCO: do vale do Douro, reconhece-se o cenário ondulado em socalcos de vinhas que descem até ao rio e que enformam a imagem mais imediata do Alto Douro Vinhateiro como Património Mundial — mas aqui a natureza foi menos domada e há uma vertigem rugosa na paisagem; do vale do Côa chegam segredos, às vezes apenas murmúrios, que atravessaram muitos milénios — em forma de gravuras rupestres que a UNESCO classificou, num processo invulgarmente rápido, por serem “um exemplo único das primeiras manifestações da criação simbólica humana e o início do desenvolvimento cultural”.
No topo do Museu do Côa (já um miradouro antes de os miradouros se tornarem moda) é onde melhor se abarca este território — não se vê, mas adivinha-se a união do rio Côa ao Douro na fundo da encosta. É um local quase simbólico da união dos dois patrimónios mundiais: o Douro tem o seu na Régua, as gravuras têm este museu — ambos são portas de entrada, um espaços de contextualização e resumo do que se vê no seu estado natural. No caso das gravuras, estas concentram-se no Parque Arqueológico do Côa, em três núcleos visitáveis, sempre com guias — do próprio parque ou dos vários operadores turísticos com licença para o fazer; no caso do Douro, num território de 24 mil hectares, cada visitante pode levar-se pelos seus caprichos.
O Douro que é Património Mundial apresenta-se aqui em Vila Nova de Foz Côa de forma distinta das que fazem a sua imagem de marca. Desde logo, estamos no Douro Superior, o que significa um território mais agreste, com menos vinha plantada e com outra tipologia — que é como quem diz, menos socalcos e vinhedos mais extensos. Ainda é visto como uma espécie de “última fronteira” nos vinhos do Douro, mesmo que em Vila Nova de Foz Côa até exista uma espécie de “mito fundacional” — afinal, foi aqui que D. António Adelaide Ferreira, a “Ferreirinha”, construiu a sua última propriedade.
E não uma qualquer: 300 hectares de terreno virgem comprado ao município onde ela fez de raiz todo o projecto — o seu derradeiro sonho no meio do nada, numa espécie de península abraçada pelo rio Douro. Entre 1887 e 1895, a sua visão ganhou corpo na Quinta do Vale Meão —onde em 1952 surgiria o Barca Velha, provavelmente o mais emblemático vinho português. O Barca Velha já não se produz aqui, mas na Quinta do Vale Meão, uma das mais recentes entradas no circuito turístico de Vila Nova de Foz Côa (abriu-se ao público em 2019), visita-se o talhão de onde saíam parte das uvas que o compunham.
Recentemente, vários projectos vitivinícolas voltaram-se para o Douro Superior, numa espécie de espírito de (re)descoberta vinícola. Vila Nova de Foz Côa não escapa e a Fundação Côa Parque, entidade responsável pela arte rupestre do vale do Côa, no seu plano estratégico para 2018-2020, não deixa de apontar “a existência de quintas vitivinícolas de grande qualidade e tradição” como factor capaz de contribuir para a atracção de turistas. Porque se é verdade que é a arte rupestre o “produto” que mais se associa a Vila Nova de Foz Côa, também é assumido que este é um turismo de nicho (que se junta à autodiagnosticada “incapacidade de afirmar o PAVC como activo turístico de relevância nacional”) e que a região poderá atrair mais turistas, se conjugar todos os seus activos.
Há, por exemplo, amendoeiras em flor que sazonalmente atraem como que peregrinações, há a natureza agreste e primordial que elas salpicam, entre uma multiplicação de montes revestidos a urze, pontuados por pombais, e que começam a desvendar-se em vários percursos pedestres, há a própria vila com o seu compasso tranquilo em torno da igreja matriz manuelina. Há, à cabeça, claro, a contiguidade de dois patrimónios mundiais.
Mas tal parece não ter reflexo na oferta turística. Esta é “baixa”, lê-se no plano estratégico da fundação — e confirma-se no Registo Nacional de Turismo: sete empreendimentos turísticos no concelho e 12 empresas de animação turística. Nos dados fornecidos pelo TPN, relativos a 2020 (e que assinalam apenas seis empreendimentos turísticos), o número total de camas é 132 (64 no único hotel, os restantes em cinco unidades de TER e TH).
Na procura, valores do TPN revelam um número de hóspedes em 2019 (antes da pandemia) de 5973 (7871 dormidas), para uma taxa líquida de ocupação de camas de 15% (a média da CIM Douro é de 29,1%, registando o valor mais alto, 40,3%, em Sabrosa). São registos que põem Vila Nova de Foz Côa na cauda dos indicadores dentro da área classificada pela UNESCO do Alto Douro Vinhateiro.
Ecoam as palavras de Gaspar Martins Pereira em relação ao Alto Douro Vinhateiro: “A classificação não é uma varinha de condão.” Aqui pesam duplamente: afinal, são dois patrimónios mundiais à espera que algo aconteça.