Prescrição Musical, a receita tocada por profissionais de saúde para os curar (e a quem os ouve)
Uma orquestra formada por profissionais de saúde ensaia, todas as quartas-feiras, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos. Nasceu em plena pandemia — por acaso e como uma terapia — e já deu e tem concertos marcados. “É uma receita para o bem-estar e a felicidade daqueles que tocam, os profissionais de saúde, e dos que os ouvem.”
Percorrer os corredores do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, numa quarta-feira ao final do dia significa ouvir ao longe violinos, violoncelos, um piano. Se seguirmos o som, vamos ser conduzidos ao auditório e encontrar uma orquestra em ensaios. É a Prescrição Musical, nascida em plena pandemia e formada apenas por profissionais de saúde que todas as semanas ali se encontram para praticar e reavivar uma vocação que nunca se tornou profissão porque a medicina se meteu no caminho. E esta é a história de um acaso que acabou em música.
O projecto nasceu em 2020, “num período complicado da covid-19”, e de uma forma, no mínimo, improvável. “Tínhamos sido mudados para os cuidados intensivos, estávamos um bocado stressados e, um dia, eu e a Clara encontrámo-nos no café. Eu levava uma partitura na mão, porque uma das coisas que me ajudavam era chegar a casa e tocar um bocadinho de música, e a Clara perguntou-me se tocava”, começa a relatar Rita Resende, especialista em anestesiologia. Foi aí que descobriu que Clara Gaio Lima, também anestesiologista, tocava violino. “E se tocássemos as duas?”, desafiou a primeira. E a segunda aceitou.
Já andavam em ensaios há cerca de um mês quando, durante uma cirurgia, Clara pôs uma playlist de piano e Marina Morais, médica de cirurgia geral, enquanto estava a operar, adivinhava o nome de todas as músicas. “Como é que sabe as músicas todas?”, perguntou alguém. “Tenho o oitavo grau de piano, costumo tocar”, respondeu Marina. Clara encontrava, assim, a terceira e última fundadora do grupo musical — ainda que, na altura, não soubesse que os ensaios em casa de Rita iriam evoluir para uma orquestra com concertos dados e marcados.
Sharon Kinder, professora de violoncelo de Rita, foi quem as ensaiou. “Mas começámos a querer tocar peças mais arrojadas, com mais instrumentos, e sabíamos de uma ou outra pessoa que toca e íamos lançando o desafio”, recorda. Os colegas foram-se juntando e, actualmente, já são dez elementos fixos, todos profissionais de saúde (como manda o requisito), de diferentes hospitais da zona do Porto. Outro requisito necessário para fazer parte da orquestra é ter, pelo menos, o sétimo grau de um instrumento — e a inscrição pode ser feita através de uma mensagem pelo Facebook.
Foi assim que chegaram ao auditório deste hospital. Às 20h de quarta-feira começam a ouvir-se instrumentos a afinar. Os músicos estão distribuídos pelo palco: à direita os três violoncelos, no centro a flauta transversal, depois os quatro violinos. Também há um contrabaixo, que, no ensaio a que o P3 assistiu, não estava presente.
David Lloyd, professor na Universidade de Aveiro, é o maestro e também membro desta orquestra. Ora está de pé, qual maestro, ora está sentado junto dos outros músicos e dá o sinal para o início da música, toca, vai-se levantando para dar indicações, algumas em português, outras em inglês — a multiculturalidade é real neste grupo e toda a gente se entende (até porque, como se costuma dizer, a música é linguagem universal).
“Nós conseguimos fazer uma parceria com a Associação Espírito de Música (dirigida por Sharon Kinder), que tem músicos profissionais e professores de música”, contextualiza Rita. “Esta associação tem como objectivo levar a música àqueles que têm mais dificuldades em ir ao encontro dela.” E, para David, participar neste projecto (pro bono) era óbvio: “Adoro música e adoro as pessoas que também curtem isto”, afiança.
Mais do que a adoração pela música, a orquestra é uma terapia para quem a integra. “Eu e a Rita fazemos urgência às terças, muitas vezes vimos para o ensaio depois de 24 horas de trabalho, mas a verdade é que isto é terapêutico, é um hobby, acabamos por chegar a casa cheias de energia apesar de serem 23h”, garante Clara.
“A música era quase o nosso segundo sonho, enveredámos por um caminho profissional na área da medicina, mas a música sempre ficou lá e acho muito melhor ter a música como hobby, porque assim podemos aproveitar ao máximo e não ter a responsabilidade que acarreta uma profissão.”
Está justificado o nome Prescrição Musical. Por outras palavras, ditas por Rita, “é uma receita para o bem-estar e a felicidade daqueles que tocam, os profissionais de saúde, e dos que os ouvem”. “Saio daqui cansada e, às vezes, um bocado desanimada porque não consigo tocar tudo bem, mas ao mesmo tempo sinto que faço parte de uma coisa maior que faz bem não só a mim, mas a outras pessoas também”, continua.
A 19 de Dezembro, pelas 18h, a Prescrição Médica vai actuar na Casa de Saúde da Boavista; no dia 20 vai fazer um espectáculo para os doentes e profissionais de saúde da Unidade Local de Saúde de Matosinhos, a casa que tão “solicitamente” os acolheu.
O crescimento parece o caminho certo. “Todas as semanas temos mais pessoas interessadas”, congratula-se David. Até já há quem queira formar um coro. “Estamos nisto para fazer isto. Com boa vontade. Eu estou aqui porque adoro fazer isto.” E porque, como dizem os clichês, às vezes a música é mesmo o melhor remédio.