Onde a música ainda não chegava, escuta-se agora uma Orquestra Sem Fronteiras
Queriam ter “um efeito oásis”. E, para isso, tinham de ir para onde a música ainda não chegava. São jovens, estão entusiasmados e, a partir de Idanha-a-Nova, querem dinamizar o interior com uma orquestra que junta músicos dos dois lados de uma linha que, ali, não existe.
Só param “em caso de catástrofe”. Que é o mesmo que dizer que devem seguir sem se deixarem afectar por notas fora do sítio ou depois do tempo. É a primeira vez que vão tocar juntos. Têm os olhos a bailar entre a partitura e a batuta na mão de Martim Sousa Tavares, ainda suspensa, à espera. Até que chega nova ordem — “Ok, primeiro andamento” — e a frase acorda as mãos do maestro que despertam as dos músicos.
Nada de mais se passou em Idanha-a-Nova, Castelo Branco, e a Orquestra Sem Fronteiras tocou mesmo até ao fim, na manhã de 9 de Março. Estamos a assistir ao primeiro ensaio de um grupo que, mais do que uma orquestra, é um instrumento para “fixar jovens músicos no interior do país”. “Para levar cultura de forma gratuita e sem comprometer os níveis de qualidade a uma população muito extensa” espalhada, para já, por 20 localidades que vão receber os primeiros concertos até ao final do ano.
No palco do centro cultural raiano, atrás de violoncelos e contrabaixos, a segurar violinos e flautas transversais, estão 42 jovens músicos da raia ibérica, estudantes e profissionais, entre os 14 e os 24 anos, quase todos, por agora, de escolas de música da Beira Interior, mas que chegaram também do outro lado da fronteira. Durante o primeiro ano, a orquestra quer tocar em 200 músicos. Para já, os que aqui vemos ou foram sugeridos por professores das escolas profissionais e dos conservatórios da região ou são estudantes universitários da raia que se candidataram.
Era uma ideia “que ficava muito bonita no papel”, rabiscada por Martim Sousa Tavares, 27 anos. Estariam a “agir numa zona que é prioritária nos quadros europeus” e, dentro dessa área, iriam focar-se num “grupo prioritário, que são os jovens”. Pensou o maestro: Se “de repente esta oportunidade lhes aparece no colo”, os autarcas “nem estão em posição de dizer que não”. Estava certo, os apoios apareceram e meses depois já se ouvem os resultados: “Foi um projecto feito à velocidade da luz.”
Em Setembro último, Martim atirou-se “a um périplo de reuniões” com 35 câmaras do interior, numa viagem marcada por “discrepâncias absolutamente extraordinárias” entre as várias administrações locais com quem contactou. Por fim, escolheu Idanha-a-Nova como sede. “Na verdade, Idanha-a-Nova é que optou por nós. É uma cidade UNESCO para a música e tem uma dinâmica muito interessante”, ri-se o maestro, “porque combina tradições muito antigas como os adufes com o [festival] Boom. E, agora, com uma orquestra.”
Acaba de voltar de Chicago, onde concluiu o mestrado em Direcção de Orquestra depois de fazer os primeiros quatro anos em Itália. Estava com “vontade de regressar” e manifestou-a, há um ano, a Catarina Távora, que agora assume a pasta pedagógica do projecto e é professora de violoncelo no conservatório de Tomar. Numa conversa de café para pôr a conversa em dia, sentados lado a lado como agora estão, o maestro dizia à violoncelista de 29 anos que “andava com vontade de fazer coisas em Portugal”. Tal como Catarina, que tirou o mestrado na Holanda, e “da maior parte dos músicos portugueses” também Martim passou pelo estrangeiro. “Mas já vamos muito bem preparados daqui. Na orquestra da União Europeia, por exemplo, a nação mais representada é Portugal. O que é extraordinário porque há dez ou 15 anos isso seria completamente impensável.”
Os dois jovens são de Lisboa mas juntar uma orquestra sem fronteiras na capital, “não faz sentido”. “Isto tem de ser para o interior. Aqui é que não há nada.” A melhor metáfora disse-a Martim mais à frente na conversa: em Lisboa, não teria “este efeito oásis”.
O concelho fronteiriço fica a meio caminho (cerca de 300 quilómetros) de Lisboa e Madrid e quase a meio da fronteira, “o que significa que ninguém tem de fazer cinco horas de viagem para aqui chegar”. Chegam em transportes assegurados pelos municípios onde estudam ou vivem, têm refeições e alojamento pago durante o período de ensaios e concertos e todos, profissionais e estudantes, recebem um cachet. É para a remuneração dos participantes que é destinada a maior parcela do orçamento que estimam conseguir para o primeiro ano da orquestra, um total de 100 mil euros, concedidos por mecenas privados, autarquias e os ministérios da Educação, Cultura e Economia. “O objectivo é o projecto não acabar. Sendo apoiado por ministérios impõe-se uma regularidade para que não fique só num ano”, explica. “Há coisas que já estamos a planear para 2020, não vou passar de certeza a minha vida com esta orquestra, mas a ideia é que possamos ser substituídos por pessoas melhores que nós e que o projecto não caia por causa disso.”
Começam com três concertos seguidos em três cidades diferentes, apenas com dois fins-de-semana de ensaios em conjunto. A 22 de Março estreiam-se ali, em Idanha-a-Nova, 23 em Campo Maior e a 24 saltam a fronteira e apresentam-se em Badajoz, onde foram convidados a integrar o ciclo com as nove sinfonias de Beethoven. A eles calhou-lhes a primeira e a quarta.
Estão todos a postos. Ou quase todos: os tímpanos de Tiago Costa, 21 anos, ficaram esquecidos algures no conservatório onde estuda, em Castelo Branco. Enquanto não chegam, o percussionista observa o ensaio da plateia, tão inclinado para a frente que parece que vai saltar para o palco a qualquer momento. Recomeça Martim Sousa Tavares: “E um, dois, três”. “Vamos continuar com a nossa aventura. A ver o que acontece agora.”