National Geographic Exodus Aveiro Fest: “O festival em que se falou da nossa extinção”
Houve lágrimas, abraços, coros de exclamação e ovações em pé no Centro de Congressos de Aveiro. O poder da fotografia foi o grande protagonista do fim-de-semana. Metade dos bilhetes para a edição de 2020 já foram vendidos.
O Big Bang e um timelapse do degelo. Fotos de sítios que foram capas de revista e que já não existem. Pessoas com nome – quem são as pessoas nas fotografias? Vozes mudas amplificadas. Animais fotografados como indivíduos, embaixadores de ecossistemas. Olhos nos olhos. Fotos de espécies que foram capas de revista e que já não existem. “Extinção da humanidade”, desabafou Daniel Berehulak, dois Pulitzer e “muita verdade” às costas. “Extinção. Agora não é um asteróide. Somos nós”, afirmou Frans Lanting, três décadas a fotografar a vida selvagem – e a ausência dela. Fotógrafos que fazem a diferença. “Coisas tangíveis”, resume Danielle Da Silva, enquanto agarra na mão esquerda o prémio Personalidade do Ano Exodus. Estão mais de 700 pessoas sentadas nas cadeiras e nos degraus do auditório. Ninguém arreda pé. Não há tempo para pausas.
Houve lágrimas, abraços, coros de exclamação e três ovações em pé no Centro de Congressos de Aveiro, pelo terceiro ano consecutivo quartel-general do National Geographic Exodus Aveiro Fest. Uma para Berehulak, que tocou no nervo ao falar da verdade, “um luxo a que nem todos têm direito”. “É uma faísca para que se possa agir.” A segunda para Lanting, que viaja no tempo na tentativa de salvar “um mundo demasiado grande para caber numa fotografia”. A terceira para Bernardo Conde, líder de uma equipa de quatro pessoas (com Anabela Gonçalves, Isabel Gonçalves e Pedro Cerqueira) que procura “pequenas revoluções”. “Não são precisas grandes revoluções para que isto mude”, disse o director do festival depois de ler a versão portuguesa da letra do tema Revolution, dos Beatles ("Dizes que queres revolução/Todos nós queremos mudar o mundo/ Dizes que é evolução/Dizes ter a verdadeira solução/Todos nós gostaríamos de conhecer o plano/Pedes-me uma contribuição/Nós fazemos o que podemos/Dizes que vais mudar a Constituição/Nós todos gostaríamos de mudar a tua cabeça"). Certo de que “de má informação está o mundo cheio”, Bernardo Conde, Exodus em riste, quer “mudar algo”, “concretizar coisas”, “alertar”. Durante dois dias, e socorrendo-se de alguns dos melhores fotógrafos do mundo, mostrou “situações horríveis” e “cenas maravilhosas”. “Este festival serve para dizer ‘tu o que estás a fazer?’ Façam a vossa revolução acontecer!”.
"As pessoas não podem dizer ‘eu não sabia!'"
Aqui – no palco e na plateia – não há fotógrafos que sempre foram fotógrafos, nem fotógrafos que nasceram activistas, jornalistas ou contadores de histórias. Há economistas (como Joel Santos) que um dia se viram deitados numa cama de hospital “a olhar para um tecto branco” e hoje tropeçam em histórias enquanto dão voltas ao mundo entusiasmados “por documentar uma tradição que se perde” ("Não estamos certos nem errados. Temos esperança que uma imagem promova uma mudança de comportamento"). Há fotógrafos de casamento (como Justin Mott) que pegaram na sua arma e foram contar a história de Nu, vítima de terceira geração do Agente Laranja no Vietname, e de pessoas que dedicam a sua vida a proteger animais (Kindred Guardians). “Posso fazer a diferença enquanto fotógrafo. Posso ter impacto. Não demorem tanto tempo como eu demorei.”
Há pessoas que se vão deixando “humanizar” por se terem tornado invisíveis nas florestas que escolheram como laboratório fotográfico (como Christian Ziegler). Há fotógrafos que questionam “porque é que não estou a fazer mais pelo ambiente?” (Krystle Wright). Há fotógrafos que coleccionavam fachadas de casas para agências imobiliárias e (até hoje) pessoas a meter o dedo no nariz (como Corey Rich, que em Aveiro lançou o livro Stories Behind the Images), pequenos ginastas, grandes escaladores que perderam amigos nas escarpas e que perderam escarpas de gelo para o aquecimento global.
Há fotógrafos que não estiveram presentes porque têm uma missão a cumprir (David Chancellor não esteve desta, mas já prometeu que estará da próxima, juntamente com Annie Griffiths, Nicole Sobecki, Benjamin Hardman, Jon Lowenstein, Taylor Rees, Dereck and Beverly Joubert, Ben Page, Renan Ozturk e Leonel de Castro, o fotojornalista português do painel de oradores da edição de 2020 com metade dos bilhetes já vendidos) e fotógrafos que deixaram uma apresentação simples e curta (Veronique de Viguerie) porque nas últimas semanas tiveram coisas mais importantes em que pensar – nos guerreiros “corajosos” que protegem a floresta Amazónia dos madeireiros ilegais (projecto de Outubro de 2019), nas crianças que “ainda hoje morrem de fome” no Afeganistão (trabalho de Novembro de 2019, sim, Novembro), nos piratas na Somália, nas milícias na Nigéria, nos talibãs, uma “obsessão” que começou em 2003. “Adivinhem! Encontrei seres humanos! Mudei a imagem que tinha do preto e branco, do bem e do mal. É um pouco mais complexo do que isso. Em vez de procurar diferenças entre os talibãs e os soldados americanos, procurei semelhanças”, explicou a francesa de 40 anos, de guerra em guerra, a fotografia “a fazer justiça”. “A única coisa que garantimos é que ao visitarmos esses heróis locais pelo menos por uma vez essas pessoas sentem que alguém viaja do outro lado do mundo para iluminar o seu trabalho. Não te sentes esquecido. E as pessoas não podem dizer ‘Eu não sabia!'”.
“Take or take care [tirar ou cuidar]?”, questiona a canadiana Danielle Da Silva, há dez anos a agarrar com as duas mãos o projecto Photographers Without Borders, um dos protagonistas deste Exodus, que a partir de agora canalizará parte dos lucros obtidos no festival na direcção desta comunidade voluntária de storytellers (fotógrafos e videógrafos) que se espalha por 54 países. “As pessoas são o problema e também a solução. Estamos perante um processo de descolonização, de regeneração das culturas e das terras. Somos a mais importante geração de sempre, mas temos que actuar já. Temos que arranjar formas novas de manter as antigas.”
"Somos resilientes. Somos muito destruidores"
Ouvir Frans Lanting e Daniel Berehulak (e a masterclass de cada um para alguns privilegiados, que atempadamente asseguraram bilhete) foi como ir do paraíso ao inferno, do poético início de tudo ao trágico fim do mundo, da vida dos animais “do ponto de vista deles” (à la Nils Holgersson, romance da sueca Selma Lagerlöf) às fotografias do surto de ébola e das vítimas fotografadas depois ou pouco antes de morrerem, de flores incríveis do tamanho de pneus de tractor a listas de pessoas assassinadas nas Filipinas na guerra às drogas de Rodrigo Duterte (em 35 dias, Daniel tirou 22 mil fotografias, entre as quais 57 corpos em 41 locais assinalados no street view). “Finalmente entendemos que temos que encontrar um equilíbrio. Ou não há futuro”, disse no final da apresentação Frans Lanting, preocupado com a prisão de oito investigadores no Irão.
“Fã do Indiana Jones” ("e com muitas cobras no quintal"), Daniel Berehulak cresceu a ouvir os pais, vítimas de deportação, a falar de injustiças. Quis “expor a verdade”. Aperfeiçoou a técnica fotográfica nos maiores palcos desportivos. Aceitou missões “sem pensar” (o ébola foi uma delas). Trabalhou em mais de 70 países. Começou a anotar o nome de todas as pessoas. Vivos e mortos. They Are Slaughtering Us Like Animals, escreveu no The New York Times. Está na lista negra do governo filipino. Diz que vai parar durante um ano e meio. “Teria que ser inumano, um Robocop. Quando paro de trabalhar é como uma locomotiva que trava e uma montanha de carruagens que se atropelam em cima de mim”, confessou na masterclass Berehulak, que na véspera, em palco, mais de 700 pessoas a suster a respiração, desatou num pranto quando deixou que outra morte (a da irmã) se cruzasse com as outras todas. “Somos resilientes. Somos muito destruidores. A forma como abusamos do planeta... é uma questão de tempo. Temos a responsabilidade de salvar o planeta. Precisamos de mais pessoas a pensar de forma diferente, a comunicar a urgência. Precisamos de todas as pessoas focadas. É preciso um movimento, que precisa de todos nós. Somos todos responsáveis, somos todos culpados. Os fotógrafos têm esse poder, podem fazer a diferença”.