Ómicron: não podemos dizer que não nos avisaram
A variante Ómicron foi identificada em África, o continente mais desprovido de vacinas contra a covid-19. Mas a reacção do mundo rico, que tem a maioria esmagadora das vacinas, foi fechar-lhe a porta. Penaliza-se a abertura científica e o lançamento do alerta.
Não podemos dizer que não fomos avisados: a Organização Mundial da Saúde (OMS) e todos os que se preocupam com a desigualdade na distribuição de vacinas contra a covid-19 no mundo avisaram-nos de que as regiões do mundo onde menos pessoas se conseguem vacinar são ninhos onde se chocam as próximas variantes do coronavírus SARS-CoV-2 que nos poderia vir atormentar.
Ainda é cedo para ter a certeza, mas se a variante Ómicron nos revelar um vírus ainda mais eficaz a infectar seres humanos e eventualmente a evadir-se das vacinas de que dispomos, como alguns cientistas mais alarmados sugerem, olhando para as múltiplas mutações que apresenta, não devemos surpreender-nos.
Esta variante foi detectada pela primeira vez em África, o continente mais desprovido de vacinas. Onde apenas um em cada quatro trabalhadores do sector da saúde está vacinado, ou 27%, segundo números avançados pela OMS esta semana. É também um continente onde há uma profunda falta de profissionais de saúde: só um país tem a taxa considerada correcta de trabalhadores do sector por habitante (10,9 por 1000 pessoas). Como diz a OMS, a perda de um médico ou enfermeiro para a covid-19, seja para doença ou, tragicamente, morte, provoca um sério impacto na capacidade de prestar cuidados de saúde à população africana.
Até agora, mais de 227 milhões de doses de vacinas contra a covid-19 foram administradas em África, diz a OMS. É uma gota de água entre os 8400 milhões de doses que, segundo a UNICEF, foram já entregues em todo o mundo, mas com forte preferência pelo mundo rico ocidental.
Mas a primeira reacção deste mundo rico ao ser comunicada a existência desta nova variante com características preocupantes – por cientistas da África do Sul, que usaram dados da rede de vigilância genómica de países com menos recursos, como o Botswana e o Zimbabwe, onde a variante Ómicron foi também detectada – foi fechar-se como uma concha. Encerramos as fronteiras a voos vindos da África Austral. “Como é se duplica a desigualdade e a injustiça? Nega-se aos países vacinas, de maneira a que surjam variantes virais e quando elas surgem, impõem-se restrições às viagens”, disse no Twitter o especialista em bioética Peter Singer, conselheiro especial do director-geral da OMS.
As palavras de Peter Singer fizeram eco nas de muitos cientistas durante esta sexta-feira, salientando que este tipo de reacção põe um ónus em quem detecta novas variantes e as dá a conhecer. É um contra-senso penalizar quem faz ciência e divulga o conhecimento a bem de todos. Não nos cansámos já de ouvir críticas sobre aquilo que é quase consensual classificar como a falta de abertura da China em relação à investigação sobre as origens do SARS-CoV-2?
As reacções vieram também em resposta à indignação do virologista Tulio de Oliveira, director do Centro de Inovação e Resposta Epidémica da África do Sul, que anunciou ao mundo a identificação da variante Ómicron: “O mundo devia dar apoio à África do Sul e a África e não discriminar ou isolá-la! Protegendo e apoiando-as, protegeríamos o mundo!”, disse no Twitter, fazendo um apelo “a bilionários e instituições financeiras”.
Jeremy Farrar, director do Centro Wellcome Sanger, no Reino Unido, e membro do conselho de cientistas que aconselha o Governo britânico, não poupou as palavras. “A África do Sul deve ser louvada, deve-se oferecer-lhe todo o apoio de que necessitar e deve ser reconhecida a qualidade e rapidez da saúde pública e da ciência genómica, o ter partilhado os dados imediatamente, apoiando a região e o mundo. Não deve ser criticada, ter sanções ou ser-lhe impostas outras restrições”, escreveu no Twitter.
Mas aqui estamos, cheios de medo de estarmos a ver os nossos piores pesadelos com a covid-19 a concretizarem-se, e de caminho a reacção de pânico está a fazer as bolsas derrapar e os preços do petróleo cair, por causa dos receios dos efeitos desta nova variante na indústria dos transportes. Após quase dois anos de pandemia, parece que não aprendemos grande coisa.