A excepção passou a ser a regra?
Estar-se-á a caminhar no sentido da criação ex novo de um direito ao teletrabalho, desde que a actividade seja compatível com esse modo de organização? Como (quase) sempre, o legislador é fraco e desquitado da realidade, empurrando trabalhadores e empregadores para as salas de tribunal.
Num dos seus últimos actos antes da dissolução, o Parlamento aprovou mais uma alteração ao Código do Trabalho, num projecto de lei negociado entre PS, PSD, BE, CDS-PP, PEV, PAN e a deputada não-inscrita Cristina Rodrigues. Apesar de este diploma não ter sido, ainda, promulgado pelo Presidente da República nem ter entrado em vigor, já é possível, sem perigo de antecipações indevidas, tecer alguns comentários às soluções que aí se consagram.
As alterações introduzidas pelo legislador prendem-se essencialmente com duas matérias: a revisão global do regime do teletrabalho e a consagração de um direito à “desconexão profissional” ou “direito a desligar”. Se já se sabe que as alterações legislativas costumam andar a reboque da evolução das bases da vida social, neste caso, esse curso natural é ainda mais óbvio, na medida em que foi a pandemia e a obrigatoriedade, durante longos períodos, do teletrabalho que evidenciou a urgência de uma revisão da legislação laboral naquelas matérias.
Quanto ao mérito do quasi-consenso alcançado na Assembleia da República, sempre diremos que a nova lei corresponderá a uma solução de compromisso entre os projectos mais radicais de uns e aqueloutros mais moderados. Em todo o caso, grande parte das alterações que a realidade reclamava foram integradas, nem que seja para tornar as regras mais claras, como sucede no que toca aos acidentes de trabalho (passa-se a considerar local de trabalho para estes efeitos o local de prestação da actividade que consta do acordo de teletrabalho), na consagração dos regimes híbridos de teletrabalho/trabalho presencial, no reforço dos direitos de privacidade dos trabalhadores, na obrigatoriedade da presença periódica do trabalhador na empresa, ou na previsão do critério de compensação do trabalhador em caso de acréscimo de despesas resultantes do teletrabalho, embora em termos menos latos do que a extrema-esquerda pretendia, na medida em que só se compensam as despesas relacionadas com a aquisição ou uso dos equipamentos e sistemas informáticos ou telemáticos necessários à realização do trabalho. Parece que o legislador quis excluir a compensabilidade, por exemplo, dos acréscimos de energia resultantes da iluminação ou do aquecimento ou arrefecimento das habitações em resultado da permanência do trabalhador em casa durante a jornada laboral.
Mas há, pelo menos, uma norma que nos merece enorme critica e censura: aquela que prevê que se a actividade contratada com o trabalhador for, em si mesma, compatível com o exercício do regime do teletrabalho, o trabalhador pode endereçar ao empregador uma proposta de acordo de prestação da actividade à distância, sendo que o empregador só a poderá recusar por escrito e de forma fundamentada. Acaso estará o legislador a tentar consagrar como modo preferencial de prestação de trabalho a via telemática?! Ou, pior ainda, estar-se-á a caminhar no sentido da criação ex novo de um direito ao teletrabalho, desde que a actividade seja compatível com esse modo de organização? Que fundamentos poderá o empregador invocar para a recusa? E quem os sindica? São tudo questões que nem o projecto de lei nem os trabalhos preparatórios dão cabal resposta. Como (quase) sempre, o legislador é fraco e desquitado da realidade, empurrando trabalhadores e empregadores para as salas de tribunal.
Na verdade, neste estágio de evolução do Direito do Trabalho, não vemos como não possa ser considerado um direito da entidade empregadora a conformação, segundo critérios empresariais, do modo de organização presencial ou não da prestação do trabalho, ainda naquelas situações em que a actividade pudesse ser realizada à distância. Dito de outra forma: o fundamento da entidade empregadora para rejeitar a proposta de acordo apresentada pelo trabalhador pode consistir num lacónico “não queremos”, sem que daí resulte, na nossa óptica, qualquer ofensa à ordem juslaboral. Todavia, ao exigir fundamentação por parte do empregador, o legislador desvia-se desta orientação, querendo favorecer “à força” o regime de teletrabalho, através da imposição de um dever de justificação objectiva, relacionada com o “processo de funcionamento da empresa” ou com os “recursos de que esta dispõe”.
Aguardamos a aplicação prática desta disposição e as dificuldades que ela gerará, incluindo o potencial contencioso que surgirá, caso o trabalhador não se conforme com a decisão da entidade empregadora. Numa última nota, não nos deixa de merecer surpresa que ao dever de fundamentação da recusa do acordo proposto pelo empregador se junte a possibilidade de o trabalhador recusar, sem necessidade de apresentar qualquer fundamento, o mesmo acordo, mas desta vez se proposto pelo empregador. Se é facto que estamos perante um ramo do direito enformado pelo favor laboris, a verdade é que não vislumbramos, neste tema particular, nenhuma justificação para a diferença de tratamento ora instituída.