Cresceu o arroz, passou o sal
Em Alcácer do Sal, os galeões ainda se impõem no rio como senhores das marés. Mas o transporte ofegante do mineral que deu o nome à terra foi transformado em passeios que deixam ver golfinhos e pontes de ferro. A Fugas foi ao Sado, entre camponeses e pescadores.
Às oito da matina, um jipe está estacionado em cima do algeroz, e “isso não se faz”. “Não estou preparado para viver assim. Estão sempre à procura de conflito”, reclama o dono da pastelaria sobre o vizinho em dia de festa, pronto a chegar aos 40°C. A conversa repete-se até às 8h45, hora em que, depois da broa de mel e do garoto, nos aprontamos para o encontro no cais da margem Sul do rio Sado. “Fica num parque de estacionamento ao lado do restaurante Porto Santana”, esclarece Rui Damião, do gabinete de Turismo de Alcácer do Sal.
Cruzamos o pequeno barco pesqueiro Camarão do Sado, onde — surpresa! — se vende o camarão miúdo do rio pelas mãos de “Maria malcriada” (de alcunha). A cidade está feita em flores de papel e fios de luz, não fosse à noite subir a procissão fluvial com a Nossa Senhora da Boa Viagem a bordo do Pinto Luísa, o galeão que nos anos 1950 carregava sal e hoje anda de passeio a mostrar lezírias, salinas sobreviventes e o azul e verde do estuário. Rui Damião queria muito que passeássemos o dia inteiro, porque veríamos o mastro e a vela subirem, cheiraríamos o mar que encosta às areias de Tróia, talvez déssemos aos olhos saltos de golfinho. E até poderíamos mergulhar, montar fogareiros, petiscar na embarcação. Mas o dia vai aprontado em chegar aos 40°C — sim, senhor — , além de que logo começam os preparativos para a procissão e o bailarico. Três horas de passeio serão.
O Sado vai calmo, não há pinga de vento. E, apesar do sol forte, as cores fazem-se pastel desde o canavial aos reflexos na água. O mestre Helder, que maneja e assegura a manutenção do galeão, empunha o remo de direcção como se comandasse um baloiço. Não porque seja fácil. “Se calhar levava mais de um ano a ensinar tudo”, afirma, sustentando a dificuldade na forma como as madeiras se comportam, nos jeitos que apanham. Foi aprendendo a domá-las depois de “andar ao mar” (como pescador), porque “uma coisa leva à outra”, já se sabe.
Quanto mais longe se está de Alcácer, mais se avistam pinheiros mansos, a matéria-prima base da embarcação. Em conversa técnica, Rui explica que o galeão tem dois robaletes no casco para “fazer atrito” e uma quilha adaptada ao rio, que também navega em mar. Vista de terra, é uma senhora embarcação a impor respeito num rio que não dá medo. Leva até 35 pessoas, mas já suportou toneladas de carga.
Sob pontes de ferro
“As pessoas levavam o sal a granel, em canastras à cabeça”, conta o especialista em turismo sobre os tempos duros do Sado. Era a época em que o equilíbrio era rei, quando se caminhava sobre pranchas de madeira que ondulavam na água e levavam homens da margem até aos galeões. “Sessenta ou setenta quilos de sal em cima da cabeça, imagine-se.” Passamos sob a ponte pedonal, depois sobre a ferroviária, e o canavial permanece tão imóvel quanto a terra, porque o calor fez o seu grande paradoxo: congelou o tempo.
Até meados do século XX, quando a vida comercial circulava inteira pela água, o Pinto Luísa chegou a levar sal a Aveiro, por mar e por rio. Mas a evolução rodoviária e o advento da refrigeração fizeram desmontar barcos e decair o sal, ele que deu origem à palavra salário, lembra Rui Damião, ilustrando a importância do mineral nas trocas comerciais. Foi então que Alcácer se voltou para o arroz, hoje tema de museu um pouco mais à frente, numa antiga fábrica de descasque da Comporta, que explica o contexto e processos inerentes ao cereal.
Mas ainda falta caminho. Passamos pelos camponeses que colhem colmo na margem esquerda do Sado para revestir as casas típicas da Carrasqueira, a aldeia da Reserva Natural do Estuário, berço do “verdadeiro choco frito”, assegura o nosso guia. Salta um peixe e outro e ainda outro. Nasce a vontade de pescar. Carlos, também a bordo, aposta no robalo, já que a corvina e o choco não andam por aí a exibir-se. Sobre as patas, desfilam garças-reais e, de quando em quando, os céus recebem aves de rapina a vigiar a fauna desatenta. Subimos para a coberta do galeão (que nunca abanará) para espreitar para lá das canas. Lá está ela, plana e geométrica, a salina da família Bicha (a quem a Câmara Municipal comprou o galeão Pinto Luísa), a manter Alcácer junto do passado, junto do sal.
No regresso, pescadores aguentam o sol como lagartos. “Há gente que gosta mesmo disto.” Mas depressa irão almoçar e entregarão o rio às piruetas de saveiros endiabrados. Sim, porque hoje é dia de pegar no barco, espalhar micro-fogos-de-artifício depois dos trompetes e clarinetes da banda filarmónica, assim que se puser em marcha a noite e, com ela, a procissão.
Peso no barco
O passeio de três horas deixou-nos na margem a tempo do almoço e a Carrasqueira soou ao ouvido como eco divino. Mas, além de restaurantes, a aldeia ribeirinha a 26 quilómetros de Alcácer ostenta um porto palafítico, casas cobertas de colmo e um enxoval de embarcações pesqueiras que vamos espreitar para dar combustível à fome.
Invadimos o sapal por um dos passadiços toscos (pode ruir a qualquer momento, mas não vai) que se diz terem sido montados há mais de 100 anos pelos locais, e um pescador adivinha a missão da Fugas entre dentes: “Querem dar uma volta de barco?” Dizer que não pode dar direito a mergulho, por isso, não arriscamos. Mas afinal o que vamos fazer é “dar peso ao barco, para pôr o motor a trabalhar melhor”.
A prática não parece estranha a este pescador, habituado a convidar deambulantes a espreitar a maré salgada que banha a península. E é um prazer andar entre passadiços, a descobrir os nomes aos barcos e a experimentar o sabor à água. Ainda assim, fica o aviso: não há marcações, nem guias, nem pedidos especiais. Só o cheiro do acaso no faro do choco frito.
No próximo sábado a série Por este rio acima navega a bordo de um bote e de um varino.