O fim da “geringonça” e caminhos para o futuro
Quem virou as costas ao diálogo foi António Costa quando se deixou dominar pelo sonho da maioria absoluta.
A “geringonça” foi criada em 2015, após as eleições legislativas. Nesse ano, o PS escolheu para programa o congelamento das pensões ou a manutenção dos cortes nos salários da função pública e ficou atrás dos partidos da direita. Foi a abertura de Bloco de Esquerda e PCP para um acordo com o PS que fechou a porta ao Governo das direitas com quem, lembremo-nos, António Costa chegou a realizar negociações.
A “geringonça” não nasceu da chantagem ou do medo, não é filha de um qualquer ultimato. É fruto de uma convergência de vontades para recuperar um país que tinha sido devastado pela troika e pela governação das direitas. Foi um período de diálogo, permanente e animado, em que se criavam grupos de trabalho para encontrar pontos comuns e não ficarmos reféns das divergências. Logo no início veio o ataque das instituições europeias com ameaças de sanções contra os orçamentos do Estado para 2016 e 2017, atacando a política de recuperação de rendimentos, mas cedência foi do lado europeu, não nos salários.
O tempo foi passando e, como em tudo na vida, não há bem que sempre dure. E o poder, sempre o poder, tem um apelo que seduz. Os sonhos de maioria entraram sorrateiros e instalaram-se até não se poderem disfarçar. “Empecilhos”, assim passaram a ser publicamente tratados os outrora “parceiros” da esquerda. E a maioria absoluta lançou-se nas eleições legislativas de 2019 - o PS foi o partido mais votado, mas faltaram os votos para o grande objetivo. Falhou o resultado das urnas, mas não se demoveu a intenção. António Costa rejeitou quaisquer acordos escritos para a legislatura e ditou as novas regras: o PS passou a “partido charneira” da política portuguesa, decidindo à esquerda ou à direita os apoios com pontualmente precisaria. Rapidamente elegeu o PSD para debate quotidiano e os partidos à esquerda eram apenas chamados, sob chantagem, para discussão orçamental. Foi esse o fim da “geringonça”.
Tendo negado alterações às leis eleitorais propostas pelos partidos à esquerda, PS foi entender-se com PSD para mexidas no Código de Trabalho, alargando o período experimental de 90 para 180 dias. Após quatro anos em que o Parlamento foi o centro da vida política porque era onde a esquerda tinha maioria, o PS escolheu o PSD para rever as regras de funcionamento e acabar, por exemplo, com os debates quinzenais com presença do primeiro-ministro. Onde antes havia reuniões permanentes com os partidos à esquerda, passou a existir um enorme e ruidoso silêncio. A “geringonça” já estava morta.
O sonho de maioria absoluta nunca desapareceu e andou sempre à espreita. No verão do ano passado foi o Presidente da República que negou a pretensão de eleições, mas a degradação da relação com o Bloco de Esquerda já estava em curso. Rejeitando abertura às propostas negociais, o Governo não deixou outra possibilidade que não o voto contra do Bloco de Esquerda ao Orçamento do Estado para 2021. O novo ano ainda só era contado em semanas e já o Orçamento se mostrava uma manta curta demais para as necessidades de um país ainda a braços com vagas pandémicas, em particular na resposta às necessidades do SNS e nos apoios sociais. O país já pagava caro pela morte da “geringonça”.
Chegou um novo período orçamental e o Governo reabriu negociações com os partidos à esquerda. Agora se percebe que não era bem uma negociação, antes uma imposição. Com as reuniões a sério a começar apenas depois das autárquicas e o Governo a rejeitar todas (e eram apenas 9!) as propostas feitas pelo Bloco de Esquerda. E quando o Presidente da República, mudando da opinião que expressou no ano passado, ameaçou, a despropósito, com a marcação de eleições, deu o mote para o fim das negociações. O resto é história e tem o fim no início da campanha eleitoral de António Costa em que pediu uma maioria absoluta que o dispense de conversar com os partidos à esquerda.
A esquerda já mostrou que sabe dialogar, deu provas disso numa melhoria geral das condições de vida do país. Quem virou as costas ao diálogo foi António Costa quando se deixou dominar pelo sonho da maioria absoluta. A conclusão é simples: a autossuficiência do PS tornou-se inimiga dessas vontades de convergência. Agora que o PS tem as eleições que ansiava, só o reforço da esquerda pode dar nova vida aos diálogos à esquerda, é isso que estará verdadeiramente em jogo: o diálogo para um verdadeiro projeto para o país.
Pedro Filipe Soares é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico