O Bolhão e a identidade de um mercado a que muitos chamam casa
O “fim de um ciclo” na história do Bolhão, levou Eugénio Leite ao mercado três meses antes de fechar para obras, em 2018. Estudou, fotografou, entrevistou comerciantes – e agora reuniu tudo num livro. Este sábado, a obra é apresentada no mercado temporário
Para o adolescente Eugénio Leite, o Bolhão era uma espécie de viagem no país sem sair do sítio. Com uns “13 ou 14 anos”, no início dos anos 70, tinha o hábito de ir ao mercado sozinho. Observar e fazer compras. “Como habitante urbano, entrava ali e era como chegar ao mundo rural”, recorda. Um mercado enorme, a céu aberto, com animais por todo o lado, vendedoras com trajes diferentes e pregões animados, feijão dentro de cestos, fruta e hortaliças coloridas. “Tinha um fascínio por aquilo”, conta Eugénio Leite, autor do livro Bolhão – Histórias e Memórias, que este sábado (15h) é apresentado no mercado temporário, no centro comercial La Vie.
O encanto pelo edifício e o que dentro dele se guarda nunca desapareceu. Mesmo morando em Vila Nova de Gaia nos últimos anos, é ao mercado portuense que recorre sempre que a ocasião o pede: “Quando quero um produto fresco para fazer um brilharete, do peixe a hortaliças, é ao Bolhão que vou.” Dessa relação de cliente e portuense orgulhoso no ícone da cidade, veio o interesse de o fotografar. A Câmara do Porto anunciara o encerramento do espaço para uma reabilitação profunda e Eugénio Leite pensava na importância de deixar em fotogramas tudo quanto se pudesse gravar. “Era a hora ideal para fazer essa memória”, conta.
O dia-a-dia no Bolhão – que deverá reabrir reabilitado entre Janeiro e Fevereiro de 2022 – levou-o a mais. Fotografia puxa conversa, conversa puxa mais conversa e, de repente, o ex-bancário tinha uma espécie de grelha de entrevista e percorria as bancadas do degradado mercado a ouvir as histórias de quem ali trabalhava, um “bichinho” adormecido em Eugénio Leite desde os anos 80, quando teve uma curta experiência como jornalista n’ O Comércio do Porto. Leu os livros de Germano Silva e Helder Pacheco, obras sobre o mercado feitas pela Faculdade de Arquitectura por encomenda do município, passou dias a fio no arquivo histórico, na biblioteca municipal. “Percebi que havia muita coisa a retalho, mas muito pouco ou nada dedicado exclusivamente ao Bolhão”, aponta.
Com 88 fotografias e textos bilingues (português e inglês), Bolhão – Histórias e Memórias percorre a história do mercado, desde a abertura da Praça do Bolhão, em 1839, passando pela edificação, em 1915, e até ao “fim de ciclo” de 2018, quando encerrou para obras de reabilitação. O livro, com prefácio de Rui Moreira, tem um capítulo dedicado à arquitectura do edifício, um sobre o comércio virado para a rua e outro sobre o comércio do interior e ainda um último chamado “sentir o Bolhão”, com o lado mais humano do mercado, das suas características físicas ao lado religioso da visita pascal feita pela paróquia de Santo Ildefonso ou aos visitantes anónimos.
Uma identidade de trabalho
Quando um portuense fala do Bolhão não é só do Bolhão que fala. Eugénio Leite assim o defende quando procura explicar o mercado enquanto “local identitário da cidade e dos portuenses”. Essa forma de ser está relacionada com o “património humano” ali guardado, com “uma cultura muito ligada ao Porto”, explica. “Representa muito o Grande porto, por exemplo, na capacidade de trabalho. Há uma notória identidade de trabalho de todas as gerações que passaram por lá.”
Por isso se espanta ao falar com António Ferreira, proprietário da Casa Hortícola, loja de uma “beleza incrível”, que aos 92 anos preserva o sonho de um novo recomeço no Bolhão. Ou com Ernestina Barros, da Manteigaria do Bolhão, que com 84 anos ainda trabalha todos os dias no mercado temporário e deverá transitar para o novo. “Há ali quase uma casa comum de todos os comerciantes. Por isso digo que é muito mais do que um mercado, é uma identidade.”
E no futuro, ainda assim será? Eugénio Leite elogia a “vontade política” de resgatar o Bolhão dos quase escombros em que vivia e do tratamento dado aos comerciantes, a quem a autarquia cedeu um espaço temporário e garantiu a vida no futuro espaço. Mas não tem ilusões quanto a uma manutenção do pretérito. A introdução de mais restaurantes no primeiro piso levará inevitavelmente a uma transformação e mesmo no piso térreo essa mudança deve fazer-se sentir, antecipa. “Como ainda há 70 vendedores que voltam [ao novo mercado], esse espírito deve manter-se durante algum tempo. Mas daqui a uma década, como em vários casos não vai haver sucessão nas lojas e muitas pessoas estão com alguma idade, o mercado será outra coisa. O espírito vai-se diluindo”, antecipa.