Paulina Chiziane e o álbum de fotografias
Paulina nunca se esqueceu do que sempre foi, dos pés descalços e da sombra da árvore onde aprendeu a escrever o seu português, o português do pretuguês, o português dos que não são autoridade.
Acabada de ganhar o Prémio Camões, Paulina Chiziane faz uso do seu sorriso terno e vingador para afirmar que afinal as mulheres negras também sabem escrever. E faz troça, tem gozo nisso, no olho grande esconde as derrotas e só deixa transparecer a vitória, suada num “Estás a ver como a preta sabe.”
Paulina é uma escritora maravilhosa, grande, imperatriz, mãe de todas as mulheres negras como eu, negras como ela, que não beneficiaram de nada em momento algum, que nunca fizeram glória dos cabelos loiros e dos olhos azuis, nem conquistaram palcos com a pele mestiça a afirmar a autoridade que é o selo de descender de um branco que garante e o posto e o lugar.
Paulina nunca se esqueceu do que sempre foi, dos pés descalços e da sombra da árvore onde aprendeu a escrever o seu português, o português do pretuguês, o português dos que não são autoridade, lembrando Léon-Grontan Damas:
“Cale-se
Já lhe disse que tinha de falar francês
o francês de França
o francês do francês
o francês francês”
Escreve e descreve o racismo e todas as facas, as facas dos brancos vestidos de caqui com uma arma na mão e as dos mestiços sempre com o lugar assegurado pela pigmentação que nunca provaram o sal com quinino das lágrimas de uma mulher e de um homem negros, sem cédula na conservatória. Percorreu o caminho sozinha, aprendeu que os pés queimam quer pisem areia quer pisem asfalto da mesma maneira, na areia que queima e no asfalto que esfola. Com isso e por isso Paulina fez-se no que é e ela é tudo menos uma faz de conta porque não só faz, desconta. Desconta a resistência que enfrenta por ser negra de carapinha e escrever o que a branca não quer ler; desconta a arrogância que desafia por ser escura na pele e clara na palma dançando a rebita que a mestiça não quer ver.
Sente e reclama com Moçambique a abarrotar de preconceitos, onde vale tudo para ser-se tudo menos mulher e negra, onde os mestiços mandam e tornam a mandar com a crueldade lavrada na herança, sórdida, utilizando os privilégios das raízes ocidentais para garantirem que roubam a lua em noite cheia, como mulher negra levada na passada larga, distraída no assobio de uma infinita liberdade. E isso, esse racismo do mestiço para com o negro, esse racismo que murmura baixinho para manter tudo exatamente como está ao mesmo tempo que vai apelando, quando convém – “Ai! Mãe, mãe negra!” – para depois se sentar na primeira fila do lado mais ocidental da sala e acenar – “Estou aqui pai.”
Paulina Chiziane não escondeu nada nas vírgulas, nos parágrafos escreveu tudo o que a alma mandou. Adivinho o quanto terá perdido, as lágrimas que terá vertido, o cru da vida que terá enxugado. Sinto-a e fecho os olhos perdida nas palavras dela a pisarem memórias que não me largam, como a daquela vez em que terminei o ensino secundário em Portugal sob o olhar da professora de História a pedir-me desculpas – “Porque nunca lhe dei os 17 valores que merecia”, enquanto relatava: “Teve as melhores notas da escola nos Exames Nacionais.”
Nesse instante tive a consciência do quão determinante foi o facto de as provas nacionais não terem fotografia. No momento de escolher o curso universitário, a minha primeira opção foi Comunicação Social, já o perseguia desde o 9.º ano quando, com a Carolina, fizemos um trabalho em que ilustrámos a capa com uma fotografia do microfone da TSF. Mas na hora H lembrei-me da professora de História. Licenciei-me em Filosofia sabendo que antes de mim viria sempre a fotografia. Foram 5 anos a estudar e a ser feliz para terminar, perder-me na força do sonho e acreditar que se quisesse podia mesmo, e embarcar na aventura de uma segunda licenciatura em Comunicação e Cultura, desta feita num curso a estrear na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Somei mais uns anos nos livros que se me acostumaram desde o tempo do externato e da Mimi e a Magui a esconderem o riso quando me levantava e respondia – “Eu, eu!” – à pergunta: – “Quem quer ler o texto de português?” E eu mal sabia que começava ali a minha relação com a fotografia…
Na infância, a leitura, os livros, as letras e as palavras remetiam-me sempre para as imagens. Já o expliquei n’ A Mensagem. Ainda hoje, quando leio um livro leio mais imagens do que palavras, pois foi de facto, na infância, quando lia alto as palavras nos manuais de português, e depois na adolescência quando trocava as matinés no Crazy Nights pelo sofá a ler O Independente, devorando jornais e revistas por culpa do trio Paulo Portas, que me ensinou a pensar, Miguel Esteves Cardoso, que me ensinou a rir, e Sousa Jamba que é, para mim, o maior cronista dos tempos atuais, foi de facto nesta experiência que sedimentei o gosto pela arte de escrever, de ler, de comunicar como se as palavras fossem películas, encarrilhadas umas nas outras como nos livros de Paulina e naquele ‘Niketche’ que nada mais é do que um magistral retrato, uma amplificada fotografia da vida na palma da mão amarela de uma mulher negra e um – “Afinal!” – que vale cada quilate de um diamante negro.
Se lhe devemos alguma coisa? Devemos-lhe tanto, devemos-lhe a coragem. A coragem que eu não tive – agora as memórias outras vez e as lágrimas do que perdi e do que nunca ganhei – porque eu não tive a coragem de me candidatar a um estágio numa redação, porque fiquei presa naquele clique que dita o retrato. E lá está ela, a minha professora de História. E as palavras dela que guardo como fotogramas. É muito difícil a uma mulher negra candidatar-se a um posto de trabalho em Portugal. A fotografia fala sempre mais alto do que qualquer possibilidade de sermos aptas, bem-sucedidas, de fazermos bem e às vezes de fazermos mal, porque nós, as mulheres negras, também erramos tantas vezes quantas as que poderíamos acertar se tivéssemos segundas oportunidades. Mas não temos, para nós não existe a redenção ou como diz a Paulina Chiziane, galardoada com o Prémio Camões, que no final “Só existem anjos brancos.”
Nota: Cheguei à Paulina através do Carmo Neto, ex-Presidente da União de Escritores Angolanos. Cheguei tarde. Foi ele quem me escreveu: “Tens de ler.”
Grata aos dois, as memórias são um álbum de música que trazem por dentro fotografias à espera de legendas, as tais palavras que as tornam lendas. Para vós, um poema entre Angola em Moçambique, escrito em memória do meu pai, para um livro que não se publica:
ZAIRE
Ergueste-me rejuvenescida
Pela batucada de um Djembê
Naquela suada noite de Lisboa
Como um pássaro
Um Falcão Negro
Ensinaste-me Kinshasa
Um passo a mais, um passo a menos
Lá!
No cheiro da terra, ensaiámos três vidas
Para uma vida toda
Nas pontas de um trilho Próximo
Eras tu, o meu grande amor.
– Tropecei-te
E no meu útero
Deixámo-nos morrer!
Sozinha (Ulika Gisela da Paixão Franco dos Santos – Katika)
Lisboa, abril de 2019