Dêem uma hipótese à ópera
Ficou com o rótulo de arte burguesa, ultrapassada, fora de moda. A maioria dos programadores e directores artísticos de outros teatros e festivais não lhe pega e a imprensa ignora-a.
Desde que entrei mais a fundo no mundo da ópera senti uma necessidade imperiosa de a levar para outras paragens, de a partilhar com outros públicos, de a cruzar com outros géneros e artistas de outras áreas, procurando novas perspectivas.
Tentei reinventá-la em novos formatos para chegar a novos públicos de todas as idades, enfim, retirá-la do “jardim fechado em que se encontra”, que é sufocante para quem, através dela, se quer exprimir nos dias de hoje!
Sempre quis partilhar a enorme riqueza que esta forma de expressão artística - a suposta arte performativa total onde cabem todas as outras - trouxe à minha existência e ao meu processo de autodescoberta.
A sua suposta artificialidade - o facto de tudo ser vivido, através de um canto com a máxima intensidade vocal e emocional - espelha afinal a nossa interioridade. O nosso pensamento interno é feito de um constante retorno obsessivo, como na ópera, evocando, vezes sem conta as mesmas ideias “Amo-o, amo-o, amo-o”, “Detesto isto, detesto isto...” “Que lindo, que lindo…” “Tão triste, tão triste, parte-me o coração, parte-me o coração…” E o processo vocal de construção e fruição de um superinstrumento capaz de voar mais do que todos os outros é único.
Mas não tem sido tarefa fácil, porque a ópera está rodeada de uma aura de preconceito em geral e, em particular, por parte da comunidade artística contemporânea, por desconhecimento e inacessibilidade. É um círculo vicioso: quanto menos se conhece, menos se quer conhecer e o preconceito instala-se.
Ficou com o rótulo de arte burguesa, ultrapassada, fora de moda. A maioria dos programadores e directores artísticos de outros teatros e festivais não lhe pega e a imprensa ignora-a.
Em Portugal isso é extremo, porque não existe quase ópera.
Não tem havido uma estratégia de serviço público exigida pela tutela na gestão do único teatro de ópera português - o Teatro Nacional de São Carlos - que devia ter responsabilidades acrescidas e teima em ser impermeável ao meio e produção cultural portugueses, ao público de hoje, aos criadores de hoje e à ópera dos nossos dias. Uma missão de serviço público seria muito bem-vinda, até para legitimar o seu próprio financiamento por parte dos contribuintes portugueses.
Trabalho numa expressão artística que se tornou o patinho feio das artes performativas: “Nós não programamos ópera!” "Não, nós programamos música de vanguarda, não programamos ópera…”. Espectáculos de ópera inovadores são ignorados, no entanto a sua apropriação feita por aqueles que a desconhecem é bem-vinda, pelos meandros das artes contemporâneas em voga. Como se pode trabalhar algo que se desconhece, como pode o público apreender uma desmontagem, quando nunca viu um espectáculo de ópera… É como apresentar uma peça de teatro “a partir de”, sem nunca se ter visto o original. Isto é diletantismo.
Dêem uma hipótese à ópera - a oportunidade de a descobrirem, de criarem e desafiarem, através desta linguagem artística tão rica e que tantas possibilidades oferece.
E faço um apelo, principalmente às grandes instituições e teatros de óperas, que são aqueles que, graças aos seus recursos e poder financeiro, comandam os desígnios da ópera: saiam dos vossos pedestais, desçam ao mundo real onde quase ninguém vai à ópera ou sabe sequer que existe ou o que é. Construam, como já fazem os produtores independentes e companhias mais pequenas, uma relação de proximidade com a vossa comunidade, com os vossos artistas, apostem e arrisquem em novos compositores e em novo repertório, convidem outros artistas de outras áreas que se apropriem e trabalhem a ópera sob todas as perspectivas. Criem temporadas alternativas com formatos mais pequenos, com outros teatros e estruturas a nível local e nacional, colaborando com outras companhias e festivais de artes performativas, para chegarem a novos públicos, abrirem novos horizontes, como faz o sector do teatro, da dança e do cinema! Tornem a ópera mais acessível e dinâmica. Saiam para o mundo real, onde a vida acontece! Devolvam à ópera a vibração do seu tempo!