Carta aos pais vítimas de tortura de sono
Não se deve esperar que os bebés durmam de um sono, e quem vende o contrário, das duas, uma: ou mente ou saiu-lhe a lotaria.
Ana,
Apetece-me escrever uma carta aos pais vítimas de tortura de sono. Reconheço-os a milhas, atropelados por noites sem dormir, e são tantos. Há décadas, escrevi logo no primeiro número da revista Pais & Filhos que, depois de termos um filho, nunca mais víamos o mundo da mesma maneira e, decididamente, nunca mais dormíamos da mesma maneira. Hoje, 30 anos depois, percebo que me limitei a constatar uma verdade universal. E intemporal.
Suspeito que é assim desde o princípio dos tempos. E é isso que lhes quero dizer: não se pode esperar que os bebés durmam de um sono, e quem vende o contrário, das duas, uma: ou mente ou saiu-lhe a lotaria.
Porque, Ana, o que vejo é pais duplamente vitimizados: não dormem, e ainda são acusados de ter a culpa de não dormir. E não sei bem qual é pior. Ser arrastado de um primeiro sono, logo naqueles primeiros minutos, pelo choro de um bebé equivale a arrancarem-nos as unhas a frio — até sinto náuseas só de o recordar —, mas dizerem-nos, na manhã seguinte, que podíamos ter evitado a noite de insónias se tivéssemos feito isto ou aquilo, se não fôssemos assim ou assado, tira qualquer pai ou mãe do sério.
Tantas certezas, meu Deus! Se tivéssemos rotinas (mas até temos), se não amamentássemos e déssemos biberões, ou, ao contrário, se déssemos de mamar em vez de leite artificial, se o quarto estivesse escuro, ou se deixássemos acesa uma luz de presença, se, se, se... Então, ele dormiria como um anjo.
A sério, Ana, não me chegam os dedos das mãos e dos pés para contar as vezes que apanhei pais a dourar os supostos resultados destas técnicas todas, para, ao fim de duas ou três perguntas mais incisivas, ficar a perceber que, afinal, os filhos deles são como os dos outros. E porque é que faltam à verdade? Coitados, provavelmente para que o interlocutor não os bombardeie com receitas e palpites.
Mas este não é um problema que se possa varrer para debaixo do tapete. Impacta loucamente a vida dos pais e do casal — privados de sono, qualquer um de nós não responde por si, e basta a mais pequena fagulha para incendiar uma discussão. Aliás, tenho para mim que muitos divórcios seriam evitados se houvesse por perto alguém que pudesse dar uma mãozinha, ficando com o bebé umas noites, ou até umas horas para que mãe e pai pudessem pôr o sono em dia. Uma oportunidade de cortar com o “deve e haver” do “eu já lá fui duas vezes”, “desculpa, a última fui eu”, com o ressentimento que se vai acumulando quando, de facto, uma das partes é a que é invariavelmente condenada à insónia.
Podemos ser nós, os avós, a ajudar? Para sorte de muitos filhos, não só podem como são, mas para isso é preciso que os pais consigam abrir mão do bebé, entregá-lo e desligar, o que também não é nada fácil.
Ou seja, o que queria dizer aos pais, e aos futuros pais, é que baixem já as expectativas, e encarem os primeiros anos de vida dos filhos como um regresso às noitadas da adolescência. E que durmam quando eles dormem, sem complexos.
Estou a ver bem?
E agora vou-me deitar, dando graças por já não ter filhos pequenos!
Querida Mãe,
Acho que está a ver tudo muitíssimo bem! A maioria dos pais dos filhos que dormem bem correlaciona esse “sucesso” com algo que fez. Os pais dos filhos que dormem mal culpam-se por essa “falha”.
Os terapeutas de sono multiplicam-se, os pediatras dividem-se, os avós tentam arranjar soluções que ajudem os seus próprios filhos exaustos. E, como em quase tudo na parentalidade, não há um “método infalível”, não há uma receita universal, nem duas famílias exactamente iguais, por isso “ganha” quem tem mais likes nas redes sociais. Deixando os outros a sentir-se mal!
De um lado, acusa-se com falta de rotinas, de regras, alimentação, etc., mas do outro também se rotulam os pais que optam — por várias razões — por abordagens mais inflexíveis, acusando-os de serem pais distantes ou menos capazes de se “sacrificarem pelos filhos.” No meio ficam milhares de pais (mas, principalmente, mães) acordados à noite de lágrimas nos olhos, a sentirem-se péssimas mães e totalmente sozinhas.
Por isso vamos relembrar o essencial, que, se quiser, pode incluir na sua carta aos pais:
a) Os bebés pequenos não foram “desenhados” para dormir horas e horas seguidas, precisam de acordar — não só para se alimentarem, mas também para se assegurarem de que têm o seu cuidador por perto. É, na verdade, e se servir de algum consolo, sinal de que os nossos filhos são muito inteligentes.
b) Há crianças que desde muito cedo começam a dormir bem (ou seja, nas horas e tempos que dão jeito aos pais, porque, sejamos sinceros, é isso que nós consideramos bem!), mas uma grande maioria demora meses ou anos a chegar a essa etapa de desenvolvimento. E não é linear, regredindo em várias fases.
c) Há várias estratégias que ajudam os bebés a adormecer, mas dependem da família, do bebé e da lua. Que o diga qualquer pai que fica todo feliz porque na semana x o bebé adormece lindamente de uma certa forma e na y já nada funciona!
d) Uma das formas mais rápidas e eficientes de adormecer um bebé é dar-lhe de mamar. O próprio leite tem hormonas indutoras de sono que aumentam durante a noite. Beber de um biberão ou ter uma chucha também ajuda. Se pararmos de achar que isto são coisas más, podemos aproveitá-las sem medo porque — tirando casos com outras questões, fisiológicas ou psicológicas — as crianças vão crescer e vão dormir, ainda que algumas mais tarde do que desejaríamos. É importante dizer que embora existam estudos que indicam que o leite artificial pode levar os bebés pequeninos a dormirem mais horas seguidas (até porque o leite materno é digerido mais depressa), essas diferenças esbatem-se com o crescimento e não há evidência de que os bebés comecem a fazer noites completas com um desmame. Ou seja, muitas mães desesperadas seguem este conselho — mesmo não querendo parar de dar de mamar — e acabam com um problema maior: um bebé que não dorme e sem a melhor forma de o acalmar e adormecer!
A única conclusão que tiro de tudo isto, quer da teoria, quer da prática, é esta: que cada um faça o que for melhor para si e para o seu bebé e todos à volta devem substituir qualquer conselho, julgamento, análise, por estas sete palavras: “Posso fazer alguma coisa para te ajudar?”
Beijinhos!
No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.