Morreu Pelé (1940-2022), o escultor do futebol sem fronteiras
Desapareceu, aos 82 anos, o astro brasileiro que deu uma nova aura à camisola 10. Marcou em quatro Mundiais, conquistou um sem-número de títulos e, com eles, o mundo do desporto.
Zaluar teria passado pelo futebol brasileiro praticamente sem deixar rasto, não tivesse sido chamado a substituir Antoninho na baliza do Corinthians de Santo André, naquele 7 de Setembro de 1956. Era dia de jogo com o todo-poderoso Santos, um encontro particular organizado para assinalar o Dia da Independência. No decorrer da segunda parte, Lula, treinador do campeão estadual, trocou o consagrado Del Vecchio por um miúdo de 15 anos, esguio e de “pernas bem fininhas”. Minutos depois, aos 79, o jovem avançado recebeu a bola de Jair, contornou um defesa e rematou por baixo do corpo do guarda-redes. Naquele instante, o guardião de 30 anos ficou furioso. Não poderia adivinhar que acabara de protagonizar um momento histórico, que mais tarde capitalizaria até ao fim da vida: “Zaluar Torres Rodrigues – Goleiro 1.º Gol de Pelé”, mandou gravar nos seus cartões-de-visita.
Estava aberta a conta-corrente do maior ídolo do desporto brasileiro, de um futebolista que marcou todo um século e que desapareceu nesta quinta-feira, aos 82 anos de idade, vítima de um cancro que o foi debilitando nos últimos tempos. O elegante diamante em bruto que despontara nas escolinhas do Bauru Atlético Clube, no interior de São Paulo, então com o número 8, haveria de sacralizar a camisola 10 e de varrer o mundo com o seu talento. Haveria de coleccionar golos e troféus com a voracidade com que os admiradores procuravam o seu autógrafo. Haveria de ser, tantas vezes, um país em movimento.
Quando hoje, em pleno Museu Pelé, nos cruzamos com a caixa que o pequeno Edson (e já lá vamos ao nome) utilizava para engraxar sapatos nas ruas de Bauru, para onde se mudou com a família aos cinco anos de idade, percebemos que o sonho começou do nada. Dondinho, o pai, contagiou-o com a febre do futebol ainda na cidade de Três Corações, em Minas Gerais. Celeste, a mãe, amparou-lhe as quedas e desimpediu-lhe o futuro com as orações diárias de uma católica inabalável.
Mas a grande profecia sairia da boca de Pelé, quando, com nove anos, viu o pai chorar, diante do rádio que lhes invadiu a casa com notícias da derrota do Brasil diante do Uruguai, na final do Mundial de 1950, em pleno Estádio do Maracanã. “Não chora, não. Eu juro que vou ganhar uma Copa do Mundo para o senhor”, terá prometido, em tom de consolo.
Em 1958, cumpriria com a palavra. Menos de um ano depois de ter assinado pelo Santos o primeiro contrato profissional, a troco de 6000 cruzeiros mensais (qualquer coisa como 70 cêntimos hoje em dia, que à época representavam cerca de dois salários mínimos nacionais no Brasil), estreou-se pela selecção principal, apontando um golo à Argentina, a 7 de Julho de 1957. E em Junho do ano seguinte, com cara e corpo de menino, chegou à Suécia para fazer estremecer os alicerces do futebol.
Era um adolescente entre homens, na mais prestigiada e mais dura competição do planeta. “Didi era o número 1 do Brasil e Garrincha um dos melhores que tinha visto. Pelé era apenas um miúdo, não sabíamos muito sobre ele. Mas quando vimos aquela equipa percebemos que não tínhamos hipótese”, reconheceria mais tarde Mel Charles, médio-centro do País de Gales, a primeira vítima de Pelé num Campeonato do Mundo.
Nos quartos-de-final da prova, a 19 de Junho de 1958, os galeses caíam graças ao golo mais jovem de sempre num Mundial. Pelé tinha 17 anos, sete meses e 27 dias de vida quando recebeu a bola no peito, fez um vólei de costas por cima de um defesa e rematou com precisão para fixar o recorde. Menos 10 dias do que assinalava o calendário quando ergueu a Taça Jules Rimet pela primeira vez, em Solna, depois de um 5-2 à Suécia (com mais dois golos, que se seguiram a um hat-trick apontado nas meias-finais, frente à França). “Seu” Dondinho estava “vingado”.
Uma alcunha que veio da baliza
Tão distantes pareciam agora os dias em que acompanhava o pai nos jogos do Vasco de São Lourenço e clamava pelo guarda-redes da equipa. “Bilé, defende, Bilé!”, gritava nas bancadas, de forma tão insistente e apaixonada que as crianças com quem convivia acabaram por lhe colar a alcunha, ainda que ligeiramente adulterada. Na verdade, foi uma alcunha desdobrada em duas. O verdadeiro nome do dono da baliza era José Lino da Conceição Faustino e o seu percurso, ainda que no futebol amador, serviu de rampa de lançamento a um ídolo de dimensões surpreendentes.
Foi a ver o pai, Dondinho (João Ramos do Nascimento é o nome de registo), jogar nessa equipa modesta, a sul de Minas Gerais, que a paixão pelo futebol floresceu em Pelé. Avançado possante, especialista no jogo aéreo, o colega de equipa de Bilé até se transferir para o Bauru Atlético Clube conseguiu contagiar o filho, ainda que o fascínio inicial da criança se emaranhasse nas redes da baliza. De tal forma que, nos jogos de rua que disputava com os amigos, começou por se destacar como guarda-redes.
Subitamente, nesses campos pelados de linhas improvisadas, o pequeno Edson era Bilé no imaginário de uma infância repleta de sonhos. Acontece que, para as crianças, o nome não era tão fácil de pronunciar quanto parece e rapidamente derivou para Pilé e, mais tarde, para Pelé. O portador da alcunha começou por rejeitá-la, considerando-a demasiado infantil, mas a sua resistência só contribuiu para a consolidar.
Quando a família Nascimento viajou para Bauru, o novo apelido de Edson viajou com ele. Em Setembro de 1953, ainda com 12 anos, estreou-se no Baquinho (a versão infantil do Bauru Atlético Clube) e rapidamente se tornou numa peça imprescindível da equipa. O projecto contava com a supervisão de Waldemar de Brito, uma antiga referência da selecção do Brasil no Mundial de 1934, e a teia de conhecimentos do então treinador foi accionada após uma goleada por 12-1 ao Flamenguinho. Nesse jogo, o imprevisível Pelé marcou nada menos do que sete golos, uma proeza que foi noticiada em São Paulo. Já não havia como ignorar o seu talento.
A 22 de Julho de 1956, Dondinho e Pelé viajaram de comboio até à Estação da Luz, onde apanharam um autocarro que os levou a Vila Belmiro, o quartel-general do Santos. Pela mão de Waldemar de Brito, Edson via as portas do estrelato abrirem-se de par em par. Nesse domingo, deu-se o primeiro contacto com o novo clube, que disputava a qualificação do Campeonato Paulista. Duas semanas depois, no momento da assinatura do contrato, o presidente do “Peixe”, Athiê Couri, ouvia as seguintes palavras da boca de Brito: “Este é o garoto que vai ser o maior jogador do mundo.”
Um hat-trick no Estádio da Luz
Começavam os dias vertiginosos de uma carreira sem paralelo. A 15 de Novembro, a primeira exibição de encher o olho, num particular frente ao Jabaquara que lhe rendeu um golo aos 59’ - o segundo do currículo, depois de ter empurrado Zaluar para a história. A 12 de Janeiro de 1957, o primeiro jogo internacional, quando o Santos recebeu os suecos do AIK (1-0). E, a 7 de Julho, a primeira internacionalização, frente à Argentina, no Maracanã: entrou para o lugar de Del Vecchio e fez o único golo do Brasil na derrota por 1-2. No mesmo mês, seguiram-se o primeiro título com a selecção (a Copa Roca) e o golo de estreia no Campeonato Paulista, no triunfo por 5-3 sobre o Piracicaba.
Nos 17 anos subsequentes, a história de glória do Santos confundiu-se com a de Pelé. Foram 10 títulos paulistas, seis campeonatos brasileiros, quatro torneios Rio-São Paulo, duas Taças dos Libertadores, outras tantas Intercontinentais e mais um par de troféus internacionais, ambos conquistados em 1968. Foram incontáveis exibições de gala, como aquela que protagonizou em pleno Estádio da Luz, a 11 de Outubro de 1962, na segunda mão da Taça Intercontinental, estilhaçando as aspirações do Benfica.
Para muitos, esse triunfo por 5-2 continua a ser um marco na carreira do astro brasileiro, autor de um hat-trick, com a camisola alvinegra. “Eles atropelaram-nos. Fomos surpreendidos pela enorme inspiração do Santos”, admitiria, anos mais tarde, o internacional português José Augusto. Pepe, antigo avançado desse luxuoso “onze” paulista, vai um pouco mais longe: “Demos um chocolate [um banho de bola] no Benfica. E foi a melhor exibição do Pelé com a camisa do Santos.”
Não demorou muito até os golos de Edson Arantes do Nascimento começarem a ser contabilizados às centenas. O 100.º chegou em 1958 (num empate com o Comercial de Ribeirão Preto), o 200.º uma época depois e assim sucessivamente até 1963, altura em que a lógica de 100 por temporada abrandou um pouco. Até que, às portas da década de 1970, acrescentou um algarismo a uma folha de estatísticas já estratosférica. A 19 de Novembro de 1969, de grande penalidade, num embate com o Vasco da Gama, apontou o milésimo golo de um total que subiria até aos 1284.
Tal como em todas as façanhas sobre-humanas, esta colecção particular levantou uma onda de dúvidas e de desconfiança. Escrutinados os critérios de contabilização, concluiu-se que foram considerados golos marcados pelos clubes que representou e pelo Brasil, mas também pela selecção do Exército, pelo Sindicato de Atletas de São Paulo ou por um “Combinado Santos-Vasco”. Alguns deles não são, sequer, avalizados pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Mas que impacto tem esta discussão no estatuto de Pelé? Rigorosamente nenhum.
Títulos e lesões em momentos cruciais
De volta ao capítulo selecção. O título mundial de 1958 deixou água na boca aos brasileiros e as expectativas para o Chile 1962 eram tão elevadas quanto fundadas. Garrincha, Vavá, Pepe, Zagallo e, claro, acima de todos, Pelé. Eram nomes com peso suficiente para carregar as esperanças de um país habituado a celebrar o futebol como celebra a vida.
O torneio começou de feição, com um 2-0 ao México que contou com um golo do “Rei”. Nesse momento, ninguém o sabia, mas seria o último que marcaria nesse campeonato. No encontro seguinte, diante da Checoslováquia, um remate de pé esquerdo provocou-lhe um estiramento na virilha que o obrigou a abandonar a prova e o sonho de ajudar o Brasil a renovar o título.
Do choque nacional à renovação da esperança foi um passo, porque Amarildo (um dos mais célebres substitutos da história dos Mundiais) aproveitou a ocasião para saltar para o “onze” e para os golos: dois no primeiro jogo e mais um na final, conquistada pelos “canarinhos” diante da mesma Checoslováquia que tão dolorosas memórias lhes tinha provocado.
O calvário de Pelé em Campeonatos do Mundo, porém, não pararia por aqui. E Portugal teve uma palavra a dizer em mais um adeus precoce à competição, em 1966. Depois de ter sofrido uma entrada violenta no encontro com a Bulgária, logo no arranque da fase de grupos, o número 10 do Brasil falhou o jogo seguinte, uma derrota com a Hungria. Sem estar totalmente recuperado da lesão, defrontou a selecção portuguesa no embate decisivo, que acabaria por eliminar o detentor do troféu e dar notoriedade a Morais, defesa português que, com uma marcação ríspida, agravou a lesão no joelho direito do “Rei”.
O maior ídolo do futebol brasileiro tinha 25 anos na altura e as perspectivas de ensaiar mais um “assalto” ao “tri”, provavelmente o último da carreira, tornaram-se difusas em vésperas do embarque para o México, depois de garantida a qualificação para o Mundial 1970. Longe da melhor forma (algo que parcialmente se explicava pelas exigências contratuais, que o obrigavam a fazer longas tournées com o Santos), Pelé debatia-se também com um problema de visão, que levou o então seleccionador, Santana, a prescindir dos seus serviços para um jogo de preparação.
Foi o suficiente para agitar as águas, ao ponto de o presidente da Confederação Brasileira de Futebol, João Havelange, ter trocado de equipa técnica, que passou a ser liderada por Zagallo. Pelé tinha de jogar. E jogou. E marcou, logo no encontro de abertura da prova, diante da Checoslováquia, um “cliente” regular no calendário do Brasil. Voltaria a facturar diante da Roménia, garantindo o apuramento para os quartos-de-final e reservando para a final o último golo em Campeonatos do Mundo. Foi o primeiro da goleada imposta à Itália (4-1), que voltou a fazer da selecção “canarinha” o centro do universo do futebol.
O(s vários) adeus do atleta do século
“Disse a mim mesmo, antes do jogo, que ele era feito de carne e osso, como toda a gente, mas eu estava enganado.” Esta frase, atribuída ao defesa italiano Tarcisio Burgnich, que defrontou Pelé na final do Mundial do México, é uma das mais sugestivas quando se trata de definir o astro brasileiro.
Depois do calvário no Chile e em Inglaterra, chegava a glória, uma vez mais. Ao troféu Jules Rimet, Pelé juntou o galardão de melhor jogador do Mundial, mais uma distinção para enriquecer o museu particular, que conta também com o rótulo de Melhor Futebolista do Século, atribuído pela France Football (oficialmente, o brasileiro não chegou a ganhar a Bola de Ouro porque, à data, era entregue apenas a futebolistas que actuavam na Europa).
Estava próximo o dia em que haveria de encerrar o capítulo selecção. Aconteceu a 18 de Julho de 1971, diante da Jugoslávia, no Rio de Janeiro. O jogo teve pouca história (terminou com um empate, 2-2) e as quase 140 mil pessoas que se juntaram naquela tarde, no Estádio Maracanã, provavelmente voltaram a casa com a sensação de que o bilhete deveria ter custado metade do preço – Pelé só jogou os primeiros 45 minutos e não marcou. Ao intervalo, fez uma volta olímpica ao recinto, recolhendo aplausos e pedidos para que continuasse a vestir a camisola do Brasil. Em vão. O ciclo terminou com 95 golos em 123 jogos (ou 77 em 92 partidas oficiais). Aos 31 anos.
Tinha começado a trajectória descendente de uma lenda. Três anos volvidos, chegava ao fim a ligação umbilical ao Santos, depois de um triunfo por 2-0 sobre a Ponte Preta em que o momento mais impactante de Pelé foi quando agarrou a bola com as mãos, no centro do relvado de Vila Belmiro, e se ajoelhou para o adeus. Tirou a camisola 10 à medida que abandonava o terreno de jogo e ensaiou uma volta de despedida ao estádio, aquela que prometera que não faria. Encerrava-se um capítulo irrepetível. “Fiz tudo para não chorar, mas infelizmente não deu”, desabafaria.
A cena seria replicada em New Jersey, no dia 1 de Outubro de 1977. Mas já lá vamos. Antes, importa perceber como é que um jogador que jurara nunca representar outro clube que não o Santos foi parar ao campeonato dos EUA. A “culpa” terá de ser repartida entre Clive Toye, vice-presidente do Cosmos, e a situação financeira que Pelé atravessava – a insistência do primeiro e a precariedade da segunda colocaram o “Rei” a caminho de um país sem tradição futebolística.
Foi durante um jogo de estrelas em Bruxelas que Pelé mudou de ideias. Se precisava de endireitar as contas da vida, iria fazê-lo através da sua arte. As negociações do contrato duraram mais de dois meses, também porque esse acordo com o Cosmos mudou o paradigma do desporto: além da performance em campo, o clube aproveitou para rentabilizar a imagem de um astro de alcance planetário, apostando no merchandising e nas acções de promoção.
Conquista de um país e o oito-em-um
As versões em redor dos proveitos de Pelé nos EUA variam entre um e dois milhões de dólares por ano, mas fosse qual fosse o valor exacto fazia sempre do brasileiro o atleta mais bem pago do mundo numa modalidade colectiva. E essa quantia compensava os estádios despidos, os relvados artificiais e os adversários de perfil amador. Era uma nova era, mas sempre com o fim à vista. E ele chegou, em definitivo, num jogo particular entre o Cosmos e o Santos (2-1). Um jogo disputado no Giants Stadium, com tremenda carga simbólica, em que o número 10 jogou meia parte por cada equipa e ainda apontou um golo, de livre directo.
Tudo somado, a aventura nos EUA rendeu-lhe mais 64 golos em 106 jogos e a admiração de um povo, que se traduziu na subida do número de espectadores e na forma como atraiu o interesse de figuras ilustres. Uma delas, Muhammad Ali, fez questão de marcar presença no dia do adeus do “Rei". “Mick Jagger, Elton John, Robert Redford, todos iam aos jogos. E Ali estava lá no último jogo, a acenar à multidão, a enviar beijos, mas, no momento em que desceu ao balneário, ele era como uma criança. Ele admirava Pelé”, descreveu à ESPN Shep Messing, na altura guarda-redes do Cosmos.
Na base da admiração generalizada pelo número 10 que marcou em quatro Campeonatos do Mundo estão tantas façanhas que é fácil perder-lhes a conta. Mas a que teve lugar em Vila Belmiro, a 21 de Novembro de 1964, também é digna de ser recordada: nessa tarde, Pelé apontou nada menos do que oito golos (sim, oito!) no 11-0 aplicado pelo Santos ao Botafogo de Ribeirão Preto, no Campeonato Estadual. Uma raridade presenciada por 9437 espectadores e por jogadores como Coutinho, seu companheiro no Santos: “Ele fazia coisas de que o diabo duvidava, coisas que só ele conseguia.”
Entre elas, conta-se também o célebre “Gol de placa” (justamente porque deu origem a uma placa comemorativa), rotulado como o golo mais bonito da história do Maracanã. O lance ocorreu diante do Fluminense, em Março de 1961, quando Pelé pegou na bola ainda na sua grande área e foi ultrapassando adversários em catadupa até ficar em frente da baliza contrária e concretizar, com um remate cruzado.
“Foi o mais completo dos números 10. Podia usar o pé esquerdo, o pé direito, o calcanhar, a parte de dentro ou de fora do pé, tinha tudo. Era rápido, atlético e explosivo”, elogiou Zvonimir Boban, um dos nomes maiores do futebol croata. Não sabemos qual é o golo favorito para o antigo médio do AC Milan, mas sabemos qual é a escolha do próprio Pelé quando se trata de hierarquizar o seu legado.
O golo dos golos, segundo o "Rei"
Para infelicidade das gerações actuais, o golo da vida de Edson Arantes do Nascimento não tem honras de vídeo. Por isso, o autor encomendou uma animação em computador desse momento que remete para o dia 2 de Agosto de 1959, para uma partida com o Clube Atlético Juventus, do Campeonato Paulista. No Estádio Conde Rodolfo Crespi, o lance terá sido desenhado com estes contornos: Pelé recebeu a bola de Dorval e libertou-se da marcação de Julinho com um primeiro toque em habilidade. Depois, passou a bola por cima de Homero, de Clóvis e, por último, do guarda-redes, encostando de cabeça para a baliza.
“Não é porque aconteceu comigo, mas não vi [golo] mais bonito até hoje”, confessou, em 2010, Mão de Onça em entrevista à Globo. Era essa a alcunha de Durval de Moraes, o último obstáculo entre Pelé e a baliza do Juventus naquele dia. “Não dá para comparar com qualquer outro. Nem de Maradona, nem de Messi… Naquela fracção de segundo, pensei em 1001 coisas. Ameaço que vou e não vou? Bola em poça de água não pula... A minha ansiedade foi senti-la na água. Mas não chegou. Ele a tirou antes e me deu o chapéu. Pelé pensava muito rápido.”
O mesmo terá sentido Zaluar – e se já não se lembra de quem falamos pode sempre regressar ao arranque do texto. Primeiro uma sensação de fúria e impotência, a dar progressivamente lugar ao reconhecimento. “Eu tinha condições de defender aquela bola. Quando o Jair lançou o guri, gritei para o Mário (defesa) fazer a cobertura. Ele levou um chapéu e num segundo o Pelé estava diante de mim. Balançou o corpo para a direita e depois para a esquerda e, quando dei por mim, ele já tinha tocado a bola no meio das minhas pernas!”
É uma condição só ao alcance dos predestinados, essa capacidade de brilhar, vulgarizando tudo o que existe em volta. Não é que os adversários não estivessem cientes do talento (e da ameaça) que tinham pela frente, simplesmente viam-se subjugados a uma habilidade superior, ultrapassados por alguém que pensava mais depressa e executava melhor. Em boa verdade, basta uma frase curta de George Cohen, lateral direito de Inglaterra no Mundial de 1966, para condensar o génio de Pelé. “Três jardas chegam para uma grande mente futebolística.”