Do lixo ao luxo: como valorizar os resíduos de fermentação

Os resíduos dos grãos de cereais usados na produção de cerveja possuem um elevado valor nutricional, sendo ricos em hidratos de carbono, proteínas, fibras, minerais, vitaminas e compostos fenólicos (com capacidade antioxidante).

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Wil Stewart/Unsplash

A descoberta arqueológica de uma fábrica de cerveja do Antigo Egipto revela que a quinta bebida atualmente mais consumida a nível mundial já tinha a sua quota de mercado em 3000 a.C. (Abydos beer factory: Ancient large-scale brewery discovered in Egypt, BBC News). Revela também que os processos de fermentação tradicionais já eram consistentemente utilizados nessa época.

De facto, até ao século XIX, os processos de fermentação consistiam na utilização de microrganismos para transformar, por exemplo, açúcar em álcool (na produção de cerveja e vinho), ou em ácido (na produção de iogurte). Com os avanços da biotecnologia, nomeadamente em termos de manipulação e recombinação genética, foi possível aplicá-los noutras áreas, tais como na produção de vacinas, vitaminas ou medicamentos. Graças a essas tecnologias, hoje em dia os microrganismos podem ser utilizados como fábricas celulares para a produção de insulina (hormona essencial para quem sofre de diabetes) ou esqualano (usado em cosmética) de uma forma sustentável, ao contrário do que acontecia antigamente, quando estes compostos eram extraídos dos corpos de animais.

O processo de fermentação resume-se, de um modo muito simplificado, a fazer crescer microrganismos específicos (bactérias, leveduras ou microalgas, por exemplo) num ambiente controlado, onde eles utilizam determinados nutrientes para produzir os compostos de interesse; por exemplo, a levedura Saccharomyces cerevisiae utiliza os açúcares existentes no malte (grãos de cereais germinados) e transforma-os em álcool e dióxido de carbono, produzindo a conhecida cerveja.

Desconhece-se o que faziam no Antigo Egipto com os resíduos da produção de cerveja. Eventualmente, as quantidades de cerveja produzida não seriam muito elevadas, e como tal, os resíduos não seriam um problema. Mas essa não é a situação atual! Efetivamente, uma vez que, dada a sua versatilidade e sustentabilidade, os processos fermentativos são usados em cada vez mais áreas, são geradas quantidades cada vez maiores de resíduos, que se podem tornar num grave problema ambiental.

Usando novamente a cerveja como exemplo, a sua produção mundial atingiu o valor de 1.930.000.000 hectolitros em 2017, o suficiente para encher 77.000 piscinas olímpicas! Essa produção gerou 46.260.000.000 toneladas de resíduos sólidos, que atualmente são essencialmente direcionados para rações animais, uma solução de baixo valor acrescentado e que pode não abranger a totalidade dos resíduos produzidos.

No entanto, estes resíduos ainda possuem componentes de elevado valor comercial, que podem ser extraídos seletivamente e usados para produzir outros compostos; deste modo, é possível pensar mais alto na escala de valor, passando do lixo (resíduos com um valor comercial praticamente nulo) ao luxo (compostos extraídos de alto valor acrescentado).

Os resíduos dos grãos de cereais usados na produção de cerveja possuem um elevado valor nutricional, sendo ricos em hidratos de carbono, proteínas, fibras, minerais, vitaminas e compostos fenólicos (com capacidade antioxidante). Devido ao alto teor em fibra, a sua utilização no enriquecimento de alimentos pode gerar benefícios para a saúde, na medida em que as fibras influenciam favoravelmente o sistema digestivo e reduzem os níveis de colesterol total. Podem também ser usados como substituto de produtos cárneos e na indústria de nutrição desportiva, graças ao seu elevado teor em proteína. Outros estudos apontam ainda para a sua utilização como uma potencial fonte de nanofibras de celulose, que são aplicadas na indústria alimentar como agentes de emulsão/dispersão.

A levedura usada na produção de cerveja é o segundo principal resíduo sólido gerado, podendo ser usada para formular novos produtos e suplementos alimentares ricos em vitaminas do complexo B e minerais (selénio e crómio), e ainda ser aplicada como intensificador de sabor natural, substituindo os glutamatos (menos saudáveis) que são usualmente adicionados a alimentos processados.

Em suma, desde o iogurte que comemos ao pequeno-almoço ao copo de vinho ou cerveja que acompanha o almoço, existem inúmeros exemplos de produtos de fermentação no nosso quotidiano. Uma valorização dos resíduos gerados na produção destes alimentos pode trazer benefícios económicos e ajudar a proteger o meio ambiente da poluição causada pela sua acumulação excessiva. De facto, dada a sua composição, estes resíduos podem ser reaproveitados para a produção de uma grande variedade de compostos valiosos. Num futuro próximo, eles poderão ser cada vez mais integrados nos nossos produtos de consumo, em áreas tão diversas como a alimentar ou a cosmética. O planeta agradecerá!


A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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