A escola e a alimentação das crianças em Portugal
Se considerarmos a alimentação escolar como um bem público que impede a progressão da doença e gera riqueza na sociedade, teremos de ter melhores equipas de gestores deste bem público alimentar, maior investimento no espaço público alimentar, na melhoria da perceção do cidadão mais jovem quanto a este bem público e na prestação de contas de quem faz esta gestão
Sempre que se chega a setembro, repetem-se as discussões sobre a alimentação escolar. Qual o papel da escola pública nesta área? A escola deve proibir ou, pelo contrário, privilegiar a educação para um consumo alimentar consciente? Compete às escolas ter o papel de ensinar a comer saudavelmente ou este é um assunto que deve ser deixado às famílias? O ensino sobre alimentação saudável deve ocorrer de forma teórica nas salas de aula ou de forma prática nos refeitórios? Qual o papel dos professores? De que forma os nutricionistas devem participar neste processo?
Apesar de não existirem respostas de base científica para muitas destas questões e muitas das respostas dadas pelos comentadores habituais sejam quase sempre de base ideológica ou de sensibilidade pessoal, existem alguns factos que nos podem ajudar a tomar decisões.
A escola ou o tempo que se passa na escola em determinada idade representa, para uma percentagem muito grande da população portuguesa mais jovem, um importante momento de formação de gostos e preferências alimentares. Nas escolas públicas portuguesas são servidas diariamente mais de 100 mil refeições e para muitas destas crianças (uma percentagem elevada sabemos hoje) o almoço na escola representa a única refeição completa do dia em que está presente a sopa, o peixe e a fruta, alimentos e diversidade que não estão presentes habitualmente nas refeições de casa.
Para muitas crianças, esta é ainda a única refeição principal do dia que não é passada em frente ao televisor ou ao ecrã do computador e é a única que é feita em frente de outras pessoas com quem se conversa, criando os ritos próprio do estar à mesa com companhia e interação. Para muitas crianças, esta é também a única refeição do dia que é acompanhada por água e não por uma bebida açucarada (sumo, néctar, refrigerante) que modifica a perceção sensorial do sabor próprio dos alimentos no decurso da refeição.
As refeições escolares e a oferta disponível nas escolas portuguesas têm um enorme escrutínio técnico e científico, talvez como não exista em mais nenhum serviço público. Esta identificação do que deve e não deve ser servido resulta de um diálogo em permanente evolução entre o setor da educação e da saúde desde 1918. Portugal tem hoje regras no domínio da alimentação escolar que fazem do nosso país uma referência internacional nesta área. Não só na fundamentação técnica do que deve ser servido e nas quantidades disponibilizadas, mas também na disponibilidade de pratos vegetarianos ou da tradição mediterrânica. Como em tudo, uma regulamentação de qualidade, para ser levada à prática de forma eficiente, tem de ter uma comunidade escolar bem formada e participativa e entidades públicas com elevada capacidade de negociação de cadernos de encargos, de fiscalização e de autonomia para punirem efetivamente as empresas fornecedoras de refeições que são incumpridoras.
Os materiais educativos na área da alimentação à disposição dos professores dos vários ciclos de estudo evoluíram bastante nos últimos anos, tanto em diversidade como em qualidade. Em 2017, e de forma pioneira a nível europeu, a Direção-Geral da Educação, em parceria com a Direção-Geral da Saúde, produziu o Referencial de Educação para a Saúde, com orientações pedagógicas na área alimentar para todos os ciclos de estudo, explorando tópicos inovadores como a Produção de alimentos e o ambiente, a Compra de alimentos por parte dos mais jovens ou o Direito à alimentação. Neste domínio, existe muita produção pública de qualidade à disposição dos interessados em fazer educação alimentar.
Apesar de a escola estar hoje mais preparada para lidar com as questões da alimentação saudável, uma percentagem elevada de crianças portuguesas sofre de problemas de saúde que vão influenciar a qualidade dos anos de vida que lhe restam. Muitos destes problemas de saúde refletem hábitos alimentares e de atividade física inadequados que se iniciaram desde a nascença, fruto da complacência de todos.
A obesidade é talvez a face mais visível destas doenças de base alimentar. Os dados mais recentes sobre este problema são relativos a 2018/2019, quando a prevalência de excesso de peso (pré-obesidade + obesidade) foi de 29,6%. Ou seja, quase uma em cada três crianças portuguesas entre os seis e os oito anos tem peso a mais. Infelizmente, para muitas destas crianças, em particular as que vivem em famílias mais pobres, o peso a mais irá acompanhá-las até à vida adulta, em que se somará o acidente vascular cerebral, certos tipos de cancro, a diabetes, que afeta mais de um milhão de portugueses, ou a hipertensão arterial, que certamente afeta mais de 3 milhões de adultos portugueses, roubando anos de vida com qualidade, e adicionando um elevado fardo económico e um grande sofrimento familiar.
Independentemente dos esforços globais feitos nos últimos anos no domínio da educação alimentar, a obesidade e doenças associadas continuam a aumentar inapelavelmente em todos os países do mundo, desde o Norte da Europa à Africa do Sul. A razão para este falhanço, um pouco por todo o lado, prende-se com o facto de a comida de má qualidade estar disponível a qualquer hora, pois conserva-se melhor, ser mais barata, dar mais lucro, ter mais dinheiro para se publicitar, estar mais facilmente nas redes sociais e ser mais atrativa sensorialmente, devido à presença de sal, açúcar e gordura. E também porque acreditámos que exclusivamente com a educação conseguiríamos mudar os hábitos alimentares dos mais novos.
A escola pode fazer a diferença? Pode ser um espaço de aprendizagem sensorial para a saúde? Pode promover uma alimentação saudável, saborosa e ambientalmente consciente? Pode incentivar uma cultura alimentar que preserva o saber estar à mesa? Pode ser um espaço que privilegia a conversa enquanto se come em vez da TV à mesa? Pode ser um espaço que dá a provar as variedades de pão de qualidade local, as frutas portuguesas da época, as sopas de hortícolas diversificados, o peixe da nossa costa, a nossa tradição gastronómica de panela, a dieta mediterrânica, a possibilidade de se comer saborosamente só com vegetais? Pode ser um espaço que impede a presença de comida-lixo? Creio que sim, que pode tudo isto, misturando sabiamente as restrições com a estratégia educativa de qualidade.
Para que este “milagre” aconteça, está já muita coisa a postos. Já temos regulamentação e muitos materiais pedagógicos preparados. Já temos algumas autarquias com nutricionistas e estratégias municipais de promoção da alimentação saudável (as autarquias e não as escolas, como erradamente se pensa, são as entidades que negoceiam os contratos públicos de alimentação escolar, que pagam e fiscalizam as refeições escolares).
Agora necessitamos do mais importante: necessitamos de mudar o paradigma atual de investimento público que pensa que é investindo maciçamente no tratamento da doença que se produz mais saúde para os portugueses. Se considerarmos a alimentação escolar como um bem público que impede a progressão da doença e gera riqueza na sociedade, teremos de ter melhores equipas de gestores deste bem público alimentar, maior investimento no espaço público alimentar, na melhoria da perceção do cidadão mais jovem quanto a este bem público e na prestação de contas de quem faz esta gestão. E sinalizar as boas práticas e apoiar quem já faz bem feito a nível local. Parte do trabalho já está feita. Agora é aproveitar as oportunidades que a descentralização de competências para as autarquias oferece para se iniciar este importante caminho.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico