A escola regressará com sensatez à finlandesa
Enquanto os humanos forem os professores haverá genética e ambiente cultural a influenciar estilos de ensino. Até nas ditaduras é difícil generalizar o modelo de professor, uma vez que há estilos intemporais, e transmissões subliminares, na leccionação.
Paulo A., professor de Matemática na Universidade de Lisboa e director do Departamento de Educação Básica do Ministério da Educação, terminava uma visita de estudo à Finlândia. Passou o último dia numa escola secundária, ciclo de ensino onde leccionou vários anos. Paulo A. e quem geria a escola foram os últimos a sair. Preparavam-se para o fazer, quando apareceu um comerciante com uma quantia significativa em notas. Com os serviços encerrados, o finlandês, que se ausentaria durante uma semana, escolheu um local seguro para guardar o envelope. Elegeu os programas das disciplinas, mais propriamente o manual de introdução, e comentou: “Raramente alguém consulta os programas e muito menos o manual que teoriza a sua aplicação.”
Um leitor menos versado nestes assuntos, interrogar-se-á: então os professores finlandeses desconhecem os programas? É evidente que não. Convivem com o elementar: no ensino há sensatez e moderação conceptual; a evolução dos programas baseia-se, fundamentalmente, no progresso científico e cultural da sociedade; tão importante como os programas, é a liderança de turmas que diferem sempre até do mesmo ano de escolaridade; os estilos de ensino variam com os conteúdos de aprendizagem e com as condições de realização. Ou seja, no imperativo democrático inclui-se um clima de confiança que inscreve latitude — e longitude — nas matérias a ensinar, em simultâneo com a preparação para as avaliações internas e externas.
Aliás, enquanto os humanos forem os professores haverá genética e ambiente cultural a influenciar estilos de ensino. Até nas ditaduras é difícil generalizar o modelo de professor, uma vez que há estilos intemporais, e transmissões subliminares, na leccionação: directividade para que os alunos ouçam; pequenas ou grandes formações na organização por grupos; e resolução de problemas, atribuição de tarefas ou descoberta guiada, na procura de soluções.
Por isso, não é sabedor misturar docimologia e técnicas de ensino com ideologias. As primeiras são, a par do conhecimento científico, a essência da profissionalidade. Se é evidente que a educação nas democracias prevê disputa ideológica e detalhes na escolha dos programas, a história comprova que a sua consolidação exige a progressão sustentada das ideias.
E o tal leitor voltará a interrogar-se: os professores portugueses também lidam assim com os programas? Claro que lidam. E têm desvantagens em relação aos finlandeses, já que por lá é civilizado o número de alunos por turma e por escola e a pobreza não é um flagelo — factos determinantes na pandemia. Além disso, os professores portugueses consideram mais variáveis críticas: são, ao contrário dos finlandeses, os primeiros da Europa na sobrecarga com burocracia inútil e têm os mais que conhecidos constrangimentos profissionais.
E perguntará ainda o leitor: estamos condenados a esta fatalidade? Dá ideia que sim. Temos uma escola emaranhada em radicalidades (da natureza das coisas) antagónicas, em resultado de políticas da educação que seriam impossíveis nas finlândias deste mundo. Não só por concretizarem epifanias, mas também por aplicarem políticas iliberais que, estranhamente, tornam-se imutáveis no essencial.
E se o leitor acompanhou a contenda mediática, entre metas curriculares e aprendizagens essenciais, que abriu a silly season escolar, terá receado pelo futuro — apesar de tudo, esteve em causa um despacho mais debatível do que a bicicleta escolar do elenco da impossível educação a tempo inteiro na escola; a propósito, não se devia legislar, em tempos de normalidade, assuntos organizacionais entre Março e Outubro. Mas fique descansado. A contenda referida é quase inútil, semelhante à da culpa do professor versus as suas circunstâncias ou entre conteúdos e competências.
Recorde-se que foi o Governo de Passos Coelho o legislador das metas curriculares. Desequilibrou a carga horária e a ideia moderna de currículo completo. Lançou as sementes para quadros de mérito académico logo no pré-escolar, para gáudio de correntes de opinião que acham que as leis do "come ou sê comido” e “da ganância é boa"— que aceleram a depleção do ego — devem ser treinadas intensivamente desde a nascença. Dizem que no tempo deles já era assim e ainda estão vivos. É um recuo à criança como adulto em miniatura da Idade Média que o Renascimento (século XVII) começou a contrariar com a escolarização. O desvario valorativo é tal, que se coloca no mesmo nível de discussão a publicitação da avaliação das crianças com o processo kafkiano que avalia os professores sem a obrigatória transparência dos actos administrativos.
Já as aprendizagens essenciais mudaram a linguagem na teorização dos programas. Só que quase nada alteraram na carga curricular, nem sequer nos horários escolares ao minuto também revelados ao Governo de Passos Coelho.
Acima de tudo, teme-se que, e num mundo mais digital, a escola pública sirva cada vez menos de elevador social se for curricularmente mínima e inconsistente.
Por fim, é consequente a interrogação: as escolas abrirão todas em Setembro? Abrirão todas. É assim em todo o mundo, até nas nações desenvolvidas onde as políticas neoliberais de gestão pública, iniciadas por Thatcher e Reagan e continuadas por Blair, Clinton e Schröder, resultaram na falta estrutural de professores. Fazem-se turmas e horários e abrem-se os portões (como se tem dito, em Portugal há, e há muito, meios e conhecimento para que os concursos de professores por lista graduada sejam um não-assunto). Quanto ao universo organizacional, invisível para quem não é profissional da educação, exige-se uma paciência directamente proporcional à burocracia inútil. Se a sensatez dos professores finlandeses resulta da estabilidade conceptual, já a dos portugueses é a terapia para lidar com radicalidades que sobrevivem à custa da elementar explicação da OCDE (2019): “Os professores portugueses são os melhores a adaptar as aulas às necessidades dos alunos.”