Morreu Esther Bejarano, a rapariga da Orquestra de Auschwitz

Não fossem os seus conhecimentos de música e Esther teria provavelmente morrido às mãos dos nazis, tal como os seus pais e irmã. A ascensão da extrema-direita e dos movimentos totalitários aos lugares de poder impeliu-a a “continuar a falar sobre o que aconteceu”.

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Esther Bejarano, uma das últimas sobreviventes da orquestra de Auschwitz, morreu sexta-feira, aos 96 anos de idade Rui Gaudêncio

Depois de um longo silêncio, dedicou os últimos anos da sua longa vida a contar os horrores do fascismo e do nazismo. “Tenho de falar, porque está a começar de novo e é muito perigoso, não só para a Alemanha, mas para todo o mundo”, justificou ao PÚBLICO, naquela que há-de ter sido uma das suas últimas entrevistas. Esther Bejarano, uma das últimas sobreviventes da orquestra de Auschwitz, morreu na última sexta-feira, aos 96 anos, anunciou o director do Centro Educacional Anne Frank, em Amesterdão, na Holanda.

Não fossem os seus conhecimentos de música, Esther teria provavelmente morrido às mãos dos nazis, tal como os seus pais e irmã. Mas, depois de ter entrado no campo de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau, no dia 20 de Abril de 1943, a alemã, então com 18 anos, escapou a ter de carregar pedras e de dormir num beliche sem colchão ou sequer palha por causa do seu talento com o acordeão. Na verdade, Esther sabia tocar apenas piano e flauta, além de gostar de cantar. Mas, como o acordeão era o único instrumento disponível na orquestra feminina do campo dirigida pela polaca Zofia Czajkowska, Esther decidiu arriscar a sua sorte com aquele instrumento. E não se saiu mal. “Tentei tocar Bel Ami, um tema popular na época. Consegui tocar os acordes certos. Foi como se fosse um milagre”, recordou na entrevista que deu ao PÚBLICO, em Fevereiro de 2020, quando veio a Portugal a convite da Escola Alemã de Lisboa para contar aos alunos daquele estabelecimento de ensino como foi passar uma parte da sua vida às mãos dos nazis.

Nascida no dia 15 de Dezembro de 1924, Esther Loewy (era este o apelido da família de origem) era filha do cantor-chefe da comunidade judaica de Saarlouis, nas margens do rio Saar, perto da fronteira franco-alemã. Foi a partir dali que Esther assistiu à ascensão ao poder da extrema-direita alemã. “Foi uma juventude terrível”, declararia sobre esses anos, mesmo se os anos vindouros tivessem acabado por lhe trazer muito pior: a segregação social, a separação dos pais e irmã, uma marcha para a morte e vários anos num campo de concentração.

Em Auschwitz, conforme recordou nas centenas de entrevistas que foi dando ao longo da sua vida, nunca deixou de a incomodar a sensação de estar a enganar os judeus recém-chegados ao campo de concentração e extermínio. “As pessoas chegavam, ouviam a música, e pensavam que, se havia música, não podia ser assim tão mau. Nós sabíamos que muitos deles iam ser mortos e tudo o que podíamos fazer era estar ali e tocar”, recordou ao canal estatal de televisão alemã Deutsche Welle, garantindo, porém, que nem essa experiência terrível conseguiu impedi-la de apreciar a beleza das criações de Mozart e Beethoven.

Quando foi libertada (não sem antes ter sido transferida para o menos severo campo de concentração de Ravensbrück por ter “um quarto de sangue ariano”, e de, mais tarde, ter-se voluntariado para trabalhar numa fábrica da Siemens, que recorria ao trabalho escravo das mulheres do campo), Esther acabaria por instalar-se em Telavive, Israel, onde estudou canto, casou e teve filhos. Na década de 1970, porém, acabaria por voltar à Alemanha, aparentemente por causa do conflito israelo-palestiniano mas também por causa dos problemas de saúde do marido. Escolheu a cidade de Hamburgo porque nada ali a remetia para a infância e juventude. Ainda assim, o amargo de boca voltou. De novo em solo alemão, contou que, quando se cruzava com pessoas mais velhas na rua, não conseguia deixar de se questionar se teriam sido elas a assassinar os pais e a irmã.

Mulher forte, apesar da fraca compleição física, Esther soube, ultrapassada a fase em que recalcou a sua experiência sob um véu de silêncio, transformá-la em em arma de arremesso contra a ascensão da extrema-direita e dos movimentos totalitários aos lugares de poder. Nos diferentes palcos a que subiu, apenas para falar ou para actuar com a sua banda, os Microphone Mafia, deixou sempre vários alertas, como este que sublinhou ao PÚBLICO: “Temos uma nova onda de radicalismo, fascismo e racismo na Europa e em todo o mundo – em Israel, nos Estados Unidos… É por isso que temos de continuar a falar sobre o que aconteceu”.

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