Carta dos Direitos Digitais: Indignação tardia e omissão conveniente
As ondas da indignação vieram só em junho, com os indignados a culpar o resto do mundo pelo facto de terem acordado fora de horas.
O artigo 6.º da Lei n.º 27/2021, de 17 de maio, que aprova a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital suscitou ondas de indignação nas redes sociais (onde tudo funciona por ondas alterosas) e críticas contundentes na comunicação social.
Se é injusto reduzir a Lei a dois números do artigo 6.º e dizer que esses dois números, só por si, justificariam o voto contra em votação final global, já a crítica pública ao artigo 6.º se afigura inteiramente justa, embora se tenha revelado lamentavelmente tardia e omissiva.
O projeto de lei do PS que deu origem à Lei n.º 27/2021 foi apresentado em 9 de julho de 2020. Seguiu-se-lhe o do PAN em 11 de setembro.
Até 3 de outubro de 2020, data em que teve lugar a aprovação na generalidade, a AR recebeu pareceres de 20 entidades, todos disponíveis na página da AR na Internet.
O processo de audições na especialidade durou seis meses, até que em 31 de março de 2021, o PS e o PAN submeteram um texto comum para votação.
Nessa reunião, o PCP requereu que fossem votados separadamente os n.º 1 e 6 do que viria a ser o artigo 6.º, relativamente aos quais pretendia expressar o seu voto contra, mais declarando que se esses dois números fossem aprovados, o PCP não votaria a favor da lei em votação final global.
O artigo 6.º refere no n.º 1: “o Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação.”
E no n.º 6, que “o Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.”
Para o PCP, o combate à desinformação ou às modernamente chamadas fake news não pode ser feito a partir da imposição de “verdades” oficiais. Sucede que todo o processo de construção da UE em sido rodeado de uma mistificação oficial sobre a real natureza da integração baseado num discurso apologético das suas virtudes e na estigmatização de qualquer opinião crítica, logo apelidada de populista e antieuropeia. Qual é a então a autoridade da União Europeia para impor planos contra a desinformação?
Igualmente grave é o n.º 6. Compete ao Estado apoiar, registar e atribuir selos de qualidade a entidades fidedignas para o chamado fact checking? Com base em que critérios de fidedignidade? E com que critérios será reconhecida a utilidade pública de tais entidades?
Nessa reunião, como se pode comprovar pelo respetivo relatório publicado no site da AR, o PCP votou isolado contra estes dois números. Votaram a favor o PS, o PSD, o CDS e o PAN. O BE absteve-se. O PEV e a IL não pertencem à Comissão. O Chega votou com os pés, não pondo lá os ditos, como acontece frequentemente.
A votação final global ocorreu em 8 de abril, tendo havido as abstenções do PCP, do PEV, da IL e do CH. PS, PSD, BE, CDS e PAN votaram a favor. O texto foi promulgado pelo Presidente da República em 8 de maio e publicado em 17 de maio.
As ondas da indignação vieram só em junho, com os indignados a culpar o resto do mundo pelo facto de terem acordado fora de horas, e a omitir que houve um partido, o PCP, que votou sozinho contra o n.º 1 e o n.º 6 do artigo 6.º da Lei 27/2021.
Omissão conveniente, num momento em que há partidos a apresentar iniciativas para corrigir aquilo em que votaram e quando até um opinador profissional decidiu explicar a autoria da proposta por um Deputado do PS pelo facto de ter sido do PCP, de onde saiu há mais de 30 anos. É que de acordo com a cartilha anticomunista, o PCP nasceu para ter a culpa de tudo, até daquilo em que é o único a votar contra.