Afinal, não era negacionismo. Era corrupção
Como os acordos que colocaram e mantêm Bolsonaro presidente devem queimá-lo em breve.
“Rapaz, a solução mais fácil era botar o Michel. É um acordo, botar o Michel num grande acordo nacional”. Essas frases, retiradas de uma conversa de 2016 entre um presidente de petrolífera e um senador federal, explicam o Brasil atual de modo profético, simbólico e auto-explicativo. O Michel em questão é Michel Temer, o vice-presidente que derrubou Dilma Rousseff, ex-presidente do Brasil. E o acordo… Pronto, esse acordo continua a vigorar até hoje e pode ser identificado, inclusive, na última grande denúncia que envolve a família Bolsonaro.
Na última sexta-feira, dia 25, o Brasil parou para assistir, na Comissão Parlamenta de Inquérito da covid-19, o depoimento dos irmãos Miranda - um deles servidor público do Ministério da Saúde e o outro um YouTuber/Deputado Federal. Durante quase uma dezena de horas de depoimento e graves denúncias, todos queriam saber qual era o nome do deputado que orquestrava, sob o conhecimento de Jair Bolsonaro, o superfaturamento da vacina indiana Covaxin. Vencido pelo cansaço, o deputado Luís Miranda assumiu que o nome, citado pelo próprio presidente num encontro presencial, era de Ricardo Barros, o líder do governo na Câmara dos Deputados.
Até o momento, Bolsonaro é acusado de prevaricação, ou seja, de praticar um ato contra a disposição expressa da lei para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Ainda não se sabe se o presidente teve uma atuação ainda mais ativa na tentativa de corrupção, mas já é possível decretar que, segundo as denúncias de Miranda (que faz mistério sobre ter gravado ou não a conversa com Bolsonaro), o presidente se teria sentido, no mínimo, com as mãos atadas perante aquele crime. Ou, quem sabe, nem se importado. Afinal, dois meses e meio depois da denúncia realizada pessoalmente pelos irmãos Miranda, Bolsonaro nomeou a esposa de Ricardo Barros para o conselho de administração da Itaipu, empresa bi-nacional que cuida da barragem hidroelétrica entre o Brasil e o Paraguai. O ordenado dela: 27 mil reais, ou, na cotação atual, por volta de 4.600 euros por mês.
No entanto, quem é Ricardo Barros? Barros é um dos principais líderes do centrão, como é chamado de maneira informal os partidos sem linha ideológica e que, geralmente, flutuam entre a direita e a esquerda, a depender dos interesses momentâneos de cada sigla. Ricardo Barros é uma ótima síntese disso: foi líder entre os deputados no governo de Fernando Henrique Cardoso e demonstrou apoio ao Governo Lula (apesar de ter feito campanha para o rival do petista).
Durante o período Dilma, foi favorável ao governo e também trabalhou de maneira intensa para a queda dela. De barco em barco, navegando conforme a maré, Ricardo Barros conseguiu o maior posto da carreira durante o governo Temer: virar ministro da Saúde. Essa foi a retribuição que ele recebeu ao apoiar o impeachment de Dilma.
Foi durante esse período que Ricardo Barros, segundo denúncias, teria fomentado uma estrutura corrupta no ministério. Além de defender diversos cortes no serviço de saúde público do país, foi ele quem nomeou Regina Célia para o Ministério da Saúde. Segundo Luís Ricardo Miranda, chefe de importação do Departamento de Logística desse Ministério, Célia é a servidora que deu aval para a compra da vacina Covaxin, apesar da área de importação indicar uma série de problemas contábeis e de contrato na operação.
Graças a essa autorização de Regina Célia, um contrato de 1,6 bilhões de reais entre o Governo Federal e a empresa Precisa Medicamentos, intermediária da compra das vacinas Covaxin, quase foi concretizado. A vacina, que é fabricada pelo laboratório indiano Bharat Biote, foi negociada com a intermediária brasileira Precisa e seria pago por um offshore sediada em Singapura. Um ninho de rato ótimo para o não rastreamento de qualquer dinheiro. Ainda mais quando aceita-se pagar 15 dólares para um produto que é oferecido por 1,34 dólar a dose.
No entanto, o que leva Bolsonaro a não fazer nada contra a suspeita que decai sobre Ricardo Barros? Ah, o acordo, aquele acordo… Se Barros usou do Governo Temer para possivelmente criar uma rede de corrupção no Ministério da Saúde, Bolsonaro utilizou Barros para manter-se vivo como presidente. Com a necessidade de manter-se longe da abertura de processos de impeachment, Bolsonaro precisou do centrão (e da ajuda fundamental de Barros) para eleger presidentes favoráveis ao governo nas duas casas legislativas do Brasil. Uma vitória que custou uma mini-reforma ministerial e mais de 500 milhões de reais (por volta de 85 milhões de euros) em emendas parlamentares a disposição de quem o ajudou na disputa.
O preço da compra do Centrão foi alto demais e Barros não pode ser descartado como qualquer outro ministro que foi demitido quando Bolsonaro precisou desviar a atenção de um novo escândalo. Barros está na política ainda há mais tempo que Bolsonaro, participou da queda de Dilma e sabe, como poucos, o funcionamento atual de Brasília. Ele é um dos autores do ‘acordão’ que culminou com o Bolsonaro presidente.
Após ser acusado de diversos crimes humanitários e de responsabilidade, Bolsonaro se vê diante daqueles que o ajudaram na eleição. Luis Miranda e Barros são políticos de direita e da base aliada de Bolsonaro. É uma briga da extrema-direita contra os próprios simpatizantes. Como manter-se em pé e defender-se contra quem sabe mais de você do que você próprio? E como defender-se após o jornal Folha de S.Paulo, no dia 29, trazer a denúncia que o Governo Federal cobrou um dólar de propina para cada dose comprada de outra vacina: a AstraZeneca. E agora a denúncia não parte de um deputado, mas sim do vendedor da vacina - a empresa Davati Medical Supply. Ao todo, o dinheiro de corrupção da compra apenas desta vacina atingiria 400 milhões de dólares. Definitivamente, não era negacionismo: era corrupção. Perante a maior pandemia do século, o maior esquema de corrupção da história da saúde brasileira.
Resta a Bolsonaro, como lhe é de costume, algum ato antidemocrático, pois todas as desculpas, cortinas de fumaça, estratégias de fake news ou fotos da suposta facada não parecem funcionar mais. A vida do brasileiro valer menos do que um dólar é um golpe que estremeceu até bolsonaristas mais fanáticos. Com CPI a todo vapor, de onde Bolsonaro conseguirá dinheiro para manter sua base? Ou ele queima-se como corrupto ou ele queima todo um acordo que o colocou lá. Esta sim, parece uma decisão difícil.