“São todos Olímpicos”
Se hoje em dia já não é admissível a realização de Jogos Olímpicos que excluam atletas do sexo feminino, tal seria considerado absolutamente discriminatório, então porque ainda se continua a admitir que tal aconteça em relação aos atletas com deficiência?
No momento em que escrevo este texto decorrem exatamente 29 dias para a abertura dos Jogos Olímpicos e 60 dias para o início dos Jogos Paralímpicos.
Enquanto valores fundamentais, o olimpismo, assumiu-se, desde sempre, como uma “filosofia universal”, aplicada a todas as culturas e promotora da paz e da diversidade.
A igualdade e a equidade apresentam-se como valores que, desde sempre, estiveram matriz dos Jogos da Era Moderna, o que não obstou, que inicialmente fosse vedada a participação de atletas do sexo feminino.
Perante os obstáculos levantados pelo Comité Olímpico Internacional (COI) em permitir a participação de mulheres, em 1917, a francesa Alice Melliat fundou a Federação Desportiva Feminina e as mulheres começaram por competir em eventos separados dos dos homens. A cultura dominante de então preconizava que o desporto no feminino não teria qualquer interesse competitivo, pelo que, se quisessem, nas mulheres poderiam faze-lo mas eventos apenas destinados a “senhoras”. Contudo, o papel emergente dos movimentos pelos direitos sociais das mulheres, possibilitou uma progressiva abertura de mentalidades a este respeito.
A integração de atletas do sexo feminino nos Jogos, embora se iniciasse de forma muito discreta na década de 30, foi muito lenta e só a partir da década de 80 do século XX, a percentagem de atletas do sexo feminino nos Jogos atingiu os dois dígitos, sendo que apenas em 2008, em Londres, ultrapassou os 40%.
No que respeita ao desporto de alta competição para pessoas com deficiência, a primeira edição dos Jogos Paralímpicos, ocorreu em Roma, em 1960, imediatamente após as Olimpíadas. Desde então, têm vindo a ser realizados Jogos Olímpicos e Jogos Paralímpicos.
O número de atletas paralímpicos tem vindo, de forma gradual e sustável a aumentar ao longo das décadas, como também tem vindo a aumentar o interesse da sociedade e do público em geral por estes Jogos.
A “Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência” (da ONU), instrumento de direito internacional, estipula que as pessoas com deficiência têm o direito de participar em condições de igualdade com as demais, em atividades desportivas regulares, incluindo pela via do desporto federado e de alta competição. Acresce, que o Ponto 6 dos princípios do olimpismo estabelece que “toda e qualquer forma de descriminação (...) é incompatível com a pertença ao Movimento Olímpico”. Perante estas duas evidências, poderá então questionar-se porque ainda existem os Jogos Paralímpicos, e porque não se integram as pessoas com deficiência nos Jogos Olímpicos, tal como aconteceu no passado com as atletas do sexo feminino?
A designação “paralímpico” de si já demonstra uma clara discriminação. A designação “para” soa a algo paralelo, a uma espécie de segunda divisão do desporto. Trata-se de um evento absolutamente separado do grande acontecimento global da excelência do desporto mundial. Então, na Era em que tanto se apregoa a palavra “inclusão”, continuamos sem realmente perceber o que este conceito significa? Esta separação ou se quisermos, segregação dos atletas com deficiência do JO, remete-nos para um evento menor em importância e simbolismo, o que perpetua a exclusão, vestida socialmente de uma prática aprazível pela condescendência de uma sociedade edificada na normalidade.
Muitos dirão que alargar os Jogos Olímpicos para a inclusão dos ditos “paralímpicos” (eu prefiro chamar atletas com deficiência) é uma impossibilidade. Dirão que os 15 dias não chegam, que as infra-estruturas desportivas não aguentam, dirão que a aldeia olímpica não suporta tantas pessoas, dirão que as televisões perderão o interesse e que os patrocinadores não estão interessados. É sempre mais fácil excluir que alterar os sistemas institucionalizados.
Para todas estas “psedo-impossibilidades” existe solução técnica, basta por exemplo alargar o período dos Jogos, de 15 para 30 dias, tal como acontece com o Europeu ou com o Mundial de Futebol. Basta promover uma gestão criteriosa e flexível das infra-estruturas desportivas e de alojamento dos atletas. Basta promover outras e adaptações perfeitamente possíveis e concretizáveis.
Também do ponto de vista da sustentabilidade ambiental e económica, a fusão dos dois eventos num só traria ganhos assinaláveis, mas o principal ganho é de facto a valorização da condição e dignidade da pessoa humana.
Claro que os/as atletas com deficiência continuariam os/as atletas com deficiência, nas suas classes e escalões, tal qual o fazem presentemente, contudo competiram no mesmo evento, sob a mesma égide, com a mesma cobertura mediática e com a mesma dignidade humana, simbólica e valorativa, principalmente no que respeita à conquista de medalhas olímpicas.
Se o caminho para a integração do desporto adaptado nas respetivas federações desportivas regulares já se encontra muito avançado, quer em Portugal, quer em muitos outros países, perguntar-me-ão porque ainda existem os Jogos Paralímpicos? Porque ao longo da história da humanidade, em todas as áreas e contextos sociais, dos quais o desporto é apenas uma pequena componente, foi sempre mais fácil e simples, excluir e separar, do que implementar uma mudança estrutural na comunidade para incluir a diversidade humana.
Se hoje em dia já não é admissível a realização de Jogos Olímpicos que excluam atletas do sexo feminino, tal seria considerado absolutamente discriminatório, então porque ainda se continua a admitir que tal aconteça em relação aos atletas com deficiência?
Perguntar-me-ão porque escrevo este texto se a decisão de incluir os atletas paralímpicos no Jogos não está nas mãos de Portugal? Responder-vos-ei que embora essa decisão possa apenas ser tomada pelo Comité Olímpico Internacional, Portugal é desse órgão um membro efetivo e na presidência da ONU encontra-se um ilustre cidadão português.
Responder-vos-ei que enquanto sociedade dos direitos, liberdades e garantias, cabe-nos também questionar e promover a discussão e a consciência social para este campo da discriminação humana, o qual que vai muito além da exclusão dos Jogos Olímpicos.
Aplaudimos de pé a superação dos atletas paralímpicos mas esquecemos que a verdadeira superação deve ser nossa, sim deve ser nossa enquanto comunidade que se transforma para acolher a diversidade humana. Sim, o desporto e o olimpismo podem e devem ser veículos importantes de mudança social e este nível.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico