Festejos do Sporting explicam aumento de casos em Lisboa, dizem especialistas

Matemático Óscar Felgueiras diz que assimetrias entre Lisboa e o resto do país só podem ser justificadas “por uma diferença no comportamento da população”. Já Manuel Carmo Gomes afirma que números mostram um “salto” na incidência entre os jovens adultos da região, a única com um R(t) superior a 1.

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Óscar Felgueiras acredita que há uma ligação entre os festejos do campeonato nacional pelos adeptos do Sporting, que decorreram na noite do dia 11 de Maio. NUNO FERREIRA SANTOS

“Acho que toda a gente sabe qual é a explicação para este aumento” de casos em Lisboa e Vale do Tejo. Quem o diz é o matemático Óscar Felgueiras, um dos especialistas convidados pelo Governo a elaborar, numa primeira fase, um plano de reabertura do país depois do primeiro desconfinamento e, numa segunda, a pensar em medidas para depois de Maio, quando grande parte da população acima dos 60 anos estiver vacinada. O epidemiologista Manuel Carmo Gomes diz que “existe uma forte plausibilidade” de uma relação entre os festejos leoninos e o aumento de infecções.

De acordo com a última actualização da Direcção-Geral da Saúde (DGS), o concelho de Lisboa está pouco abaixo do limite de incidência definido pelo Governo, que é de 120 casos por 100 mil habitantes a 14 dias. A região tem 118 casos, mais 37 que o registo da passada sexta-feira. Caso fique novamente acima do limite, Lisboa passará a integrar a lista de concelhos em alerta, ficando em risco de recuar nas etapas de desconfinamento caso a situação continue a agravar-se.

“Uma diferença destas, principalmente num concelho populoso como o de Lisboa, só pode ser justificada por uma diferença significativa do comportamento da população. Não existem outros factores que distingam demasiado Lisboa do resto do país. Poderíamos pensar que esta semana, por exemplo, foram aliviadas restrições à circulação de viajantes internacionais e Lisboa tem um aeroporto internacional, mas estes números não reflectem isso”, diz.

O matemático explica que, em algumas situações, principalmente em concelhos de menor dimensão, o aumento de casos pode ser explicado pelo aparecimento de surtos de covid-19. Mas diz que este não é o caso da capital, que tem mais de meio milhão de habitantes. Óscar Felgueiras acredita que há uma ligação entre os festejos do campeonato nacional pelos adeptos do Sporting, que decorreram na noite do dia 11 de Maio. 

“Há aqui uma coincidência temporal com os festejos que houve do Sporting e há uma forte probabilidade de haver aqui uma associação. O que se observa claramente é que este aumento é algo significativamente diferente do comportamento do resto do país. Num concelho grande, como é o caso, não basta um ou outro surto, tem de haver mais do que isso. Lisboa tem meio milhão de pessoas, tem de haver aqui um fenómeno de dimensão maior a explicar isso e é legítimo pensar que há aqui uma associação com os festejos”, defende.

Na festa do título, o distanciamento físico e o uso de máscaras não foram cumpridos por vários adeptos. A Direcção-Geral da Saúde (DGS) aconselhou, aliás, quem esteve nas celebrações da vitória do Sporting no campeonato de futebol a reduzir os contactos nos 14 dias depois dos festejos e estar atento a sintomas de covid-19.

O epidemiologista Manuel Carmo Gomes não afirma peremptoriamente que o aumento é causado pelos festejos, mas sublinha que “existe uma forte plausibilidade” de que os festejos do título estejam na origem do aumento verificado. No entender do especialista, torna-se “difícil dissociar” as duas circunstâncias quando os números mostram um “salto” na incidência entre os jovens adultos da região de Lisboa e Vale do Tejo a partir de 17 de Maio, seis dias depois do evento.

“Há um salto na incidência do grupo dos 20 aos 29 anos. Já está a chegar à zona dos 160, 170 casos por 100 mil habitantes”, refere Manuel Carmo Gomes, relembrando que “o tempo mediano de aparecimento de sintomas são cinco dias” e que, por isso, a evolução dos próximos dias poderá tirar as certezas. O que é claro é que desde 17 de Maio os dados mostram “um aumento muito pronunciado” entre os jovens adultos.

A diferença da incidência neste grupo jovem de Lisboa e Vale do Tejo para os restantes é grande: a faixa etária seguinte é a dos 30 aos 39 anos e está na casa dos 80 casos por 100 mil habitantes, mesmo também tendo registado uma “subida acentuada” a partir da mesma altura.

Além disso, e por país estar a atravessar uma altura de baixa incidência, um aumento de casos numa só região terá, inevitavelmente, um impacto no R(t) nacional, que esta semana ultrapassou o 1. “Se formos a reparar, o R(t) em todas as regiões do Continente está abaixo de 1 excepto em Lisboa e Vale do Tejo, que está com um valor bastante elevado, de 1,11. A verdade é que as incidências na maior parte dos concelhos vizinhos estão baixas e há uma grande excepção que é Lisboa”, refere ainda o matemático Óscar Felgueiras.

Há um outro concelho da região de Lisboa e Vale do Tejo, a Golegã, que também está acima dos 120 casos por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias (tem 243 casos), mas Óscar Felgueiras afirma que são situações diferentes, uma vez esse concelho do distrito de Santarém tem 5 mil habitantes e 13 casos nos últimos 14 dias.

Em Lisboa estamos a falar de 600 casos num período de 14 dias. É certamente diferente. Há uma concentração de casos em Lisboa e isso é relevante”.

“É esta situação de Lisboa que está a criar a situação do R(t) acima de 1 a nível nacional, porque tirando as ilhas só Lisboa e Vale do Tejo está acima de 1. E é em particular este grupo de jovens adultos”, apoia Manuel Carmo Gomes. Mais ainda, a partir dos 60 anos todos os grupos etários têm incidência “abaixo dos 50 casos por 100 mil [habitantes]”, refere, reforçando a ideia de que são os casos entre os 20 e os 29 anos que contribuem para o agravamento da situação.

relatório das linhas vermelhas para a covid-19 divulgado esta sexta-feira pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) e do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) indica a mesma tendência a nível nacional: é o grupo dos 20 aos 29 o que tem maior incidência cumulativa, sendo que a menor incidência está nos mais velhos.

Governo não relaciona aumento de casos com festejos

Esta quinta-feira, quando foi questionada sobre se os festejos do título do Sporting se reflectem num aumento do número de casos, Mariana Vieira da Silva preferiu não tirar conclusões “com tão poucos dias de distância” e com tantas variáveis em questão.

“Vínhamos num crescimento do R(t) que já tinha sinalizado na semana passada”, observou a ministra na conferência de imprensa após o Conselho de Ministros​, referindo ser mais importante “procurar identificar os sítios onde o crescimento é significativo e responder com medidas de saúde pública, de testagem, medidas de actuação focadas”.

A ministra referiu também que se verifica um aumento do R(t) na região de Lisboa e Vale do Tejo e avançou que serão definidas medidas “em conformidade”. Esse trabalho passa pelo reforço dos testes nas escolas e serviços públicos e a recomendação de aumento da testagem nas grandes empresas.

Resposta passa por “aumento brutal” da testagem

Manuel Carmo Gomes pede cautela para que se possa ver o que acontece nos próximos dias, mas admite que se pode estar a “começar a pagar as consequências” dos festejos com menos controlo. A resposta agora passa por aplicar “as medidas que temos estado a adoptar com sucesso desde Março”. A começar pela testagem e rastreio de contactos.

“[Precisamos de um] grande aumento da testagem, não deixar que as cadeias de transmissão se formem. Fazer o rastreio dos contactos em menos de 24 horas, apanhar rapidamente os contactos, acompanhar as variantes”, enumera. Numa altura em que as hospitalizações “continuam a descer suavemente” e com o país a chegar aos 90% da população com mais de 60 anos vacinada, a preocupação do combate à pandemia do país deve focar-se noutros pontos como “a economia ou a imagem que o país tem lá fora”. “E aí a incidência é importante”.

“O motor da transmissão é a população activa. São os adolescentes, jovens adultos, adultos, população até aos 60, 65 anos. E essa população ainda não está suficientemente vacinada”, aponta, ao recordar que é por aí que têm aumentado os casos. O epidemiologista apela por isso a um “aumento brutal” da testagem para evitar que se ande “atrás dos casos” na realização dos testes, como foi acontecendo em outros momentos da pandemia.

“Portugal ao longo de Março e Abril teve com muito sucesso uma percentagem de casos positivos abaixo de 1%. Já estamos a subir, estamos em 1,7%. Em uma semana passamos de 1% para 1,7%. E provavelmente [a situação em] Lisboa e Vale do Tejo tem muita responsabilidade nisso”, diz Manuel Carmo Gomes. O relatório conjunto da DGS e do INSA desta sexta-feira indica que 1,2% dos testes para SARS-CoV-2 tiveram resultado positivo, tendo-se observado “um decréscimo” do número de amostras processadas na última semana. 

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